DO
BIFE À PIPOCA: CONEXÕES ALÉM DO POSSÍVEL
Mazilda
Fiamoncini
Resumo: Este artigo apresenta uma análise
das marcas que caracterizam a produção literária,
moderna e pós-moderna, no conto “O bife e a pipoca” de Lygia Bojunga
Nunes e como a narrativa se estrutura, esteticamente, em seus processos
discursivos, nas vozes que se manifestam e dialogam, nesse paradoxal mundo
moderno.
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Palavras-chave: Polifonia, modernidade, estética. |
Resumen:
Este artículo presenta
una análisis de las marcas que caracterizan la producción
literária, moderna e posmoderna, en el cuento “O bife e a pipoca”
de Lygia Bojunga Nunes y cómo la narrativa se estructura, esteticamente,
en sus procesos discursivos, en las vozes que se manifestan e dialogan,
en esse paradoxal mondo moderno.
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“A alma
farta pisa o favo de mel, mas
para a alma faminta o amargo é
doce.”
Provérbios
27, 7
1
Introdução
Historicamente,
o fazer humano sempre esteve marcado pela evolução, seja
ela biológica, científica, cultural, artística. Tais
marcas também se evidenciam nas artes literárias, pois estas
são inerentes ao homem.
Nesse percurso histórico,
muitos foram os meandros vencidos pelo homem até atingir a era moderna.
Convém esclarecer aqui, que, por moderno, entendo o período
ulterior ao movimento iluminista. Já nesse período, surgem
as primeiras manifestações de “modernidade” desencadeadas
pela Revolução Industrial e pelo racionalismo cartesiano.
Quando pensamos em revolução
como o grande termo do modernismo, vemos como se instala na atualidade
um verdadeiro processo de desconstrução do mito humanista
do progresso revolucionário. No campo literário, muitas vezes,
é a partir da narrativa da própria revolução
que se põe em causa o mito, pela multiplicidade contraditória
dos discursos de progresso ou pela confrontação dos ideais
universalistas com as situações locais e particulares”. (Villaça,
1996, p.25).
Mesmo que a
modernidade “pretenda expressar a auto-consciência de nosso tempo como
época em oposição ao passado – ao mesmo tempo parece desmentir,
paradoxalmente, essa intenção pelo seu retorno histórico cíclico (Olinto, 1996).
Pretendo, ao analisar o
conto “O bife e a pipoca”, contribuir para a discussão do contemporâneo,
do pós-moderno, com o olhar voltado à modernidade como um
todo, enfatizando o modernismo.
2 O bife e a pipoca: um abismo intransponível?
O conto “O bife e a pipoca”, de Lygia Bojunga Nunes, é
parte integrante do livro entitulado “Tchau”. Essa narrativa problematiza
mais que a negação dos modelos e parâmetros instituídos. O modelo que
estabelece o padrão de família perfeita, de instituições educacionais
particulares que privilegiam grupos sociais de acordo com o que possuem; os
parâmetros que estabelecem as diferenças conforme a situação financeira e
que configuram as categorias dos dominantes e dominados. A autora opta pela
multiplicidade, pelos paradoxos, pela (dis)junção de pares antagônicos.
Acredita na possibilidade de construir um elo entre mundos, onde subjazem
realidades opostas. Simultaneamente a perdas, a desagregações, também há uma
aposta na construção de um uno múltiplo, rompendo essas diferenças.
Abandonando os já cristalizados inícios narrativos, o conto em análise começa a
estruturar-se a partir de uma carta manuscrita, que um dos protagonistas, o
menino Rodrigo, remete ao seu amigo Guilherme, que se mudara do Rio para
Pelotas. Nela, lamenta a saudade provocada por sua ausência. Um abismo
representado pela distância geográfica entre os mesmos. Conta-lhe também as
novidades da escola: a chegada de duas novas alunas e de um aluno bolsista,
morador de favela que ocupou o lugar que antes era de Guilherme. Também observa
que esse menino não olha e nem fala com ninguém. Novo abismo irrompe no processo
narrativo, agora marcado pelas diferenças sócio-econômicas.
O
projeto sócio-cultural da modernidade traz, nesse contexto, as marcas do
capitalismo desorganizado, que privilegia algumas das camadas sociais em
detrimento de outras. Essa confrontação de realidades permeará todo o processo
narrativo do texto.
2.1 De turíbio carlos a tuca: a criação de uma persona
No capítulo 2, a
história passa a ser narrada em terceira pessoa. Momentaneamente,
a voz do protagonista silencia, para que se construa o percurso discursivo,
que introduzirá o segundo protagonista: Turíbio Carlos – Tuca.
No contexto de sala, durante
a aula de geografia, o novo aluno é apresentado à turma.
Essa disciplina situa espaços e, nessa apresentação,
torna-se índice de determinação do espaço de Tuca. Como o nome do menino é, de certa forma, pomposo demais, acaba
por ser reduzido ao apelido que ele recebe em casa, Tuca. De Turíbio
Carlos passa a ser simplesmente Tuca. Determinou-se, nesse ato, o espaço
que seria ocupado pelo aluno, a posição secundária
em relação aos outros. O garoto que vem da favela, mesmo
tendo merecido a promoção por ter se destacado entre os “seus”,
é margem nesse outro espaço discursivo, no qual foi inserido.
Isso reafirma o caráter pós-moderno do conto. No dizer de
Villaça, “o declínio da noção de indivíduo,
substituído na contemporaneidade pela noção de persona,
mais adequada à sucessão de máscaras que vão
assumindo os participantes das diversas tribos que articulam e se entrecruzam
no quotidiano atual” (Villaça, 1996).
Mais um abismo se
abre: Turíbio Carlos constitui-se num nome, cuja força enunciativa
prepondera sobre Tuca. Nessa troca, estabelece-se, mascaradamente, a distância
que há entre as duas classes sociais. Na aceitação
passiva de Tuca, quanto a esse tratamento, a sujeição do
sujeito à sua condição de dominado. Essa é
a primeira vez que a voz de Tuca se enuncia, para, em seguida, retornar
ao seu silêncio.
O recurso estilístico
que se desenrola após a apresentação de Tuca, no momento
em que Rodrigo lancha, personifica o sentido suspenso da fome de Tuca.
Podemos constatar isso no fragmento textual a seguir:
O olho de Tuca foi indo
pro sanduíche. Quando chegou lá: quem disse que ia embora?
O Rodrigo pegou o sanduíche,
deu uma dentada, e aí viu que o olho do Tuca também tinha
mordido o pão.
A boca do Rodrigo foi mastigando.
O olho do Tuca mastigou
junto.
A boca deu outra dentada;
o olho mordeu também.
A boca foi parando de mastigar;
o olho do Tuca foi ver o que que tinha acontecido: deu de cara com o olho do
Rodrigo: se assustou: voltou correndo pro caderno.
Nesse fragmento, a percepção
gustativa é sentida pelos olhos, remetendo-nos ao dito popular “comer
com os olhos”. Essa imagem causa estranhamento e só é aceitável
como experiência estética, porque, de acordo com Jauss,
é lícito
pensá-la como propiciadora da emancipação do sujeito:
em primeiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina
cotidiana; estabelece uma distância entre ele e a realidade convertida
em espetáculo; pode preceder a experiência, implicando, então,
a incorporação de novas normas, fundamentais para a atuação
e compreensão da vida prática, e, enfim, é concomitantemente
concepção utópica, quando projeta vivências
futuras, e reconhecimento retrospectivo, ao preservar o passado e permitir
a redescoberta de acontecimentos enterrados (apud Zilbermann, 1989, p.
54).
Rodrigo oferece seu sanduíche
ao Tuca. Nessa oferta, faz-se a ponte entre os dois mundos. Na descoberta
de suas diferenças, surge uma ligação pessoal que
desperta, em Rodrigo, a consciência de si como outro. A alteridade
do sujeito constituído como ser-no-mundo cria uma rede dialógica
construída a partir da interação que se consolidará
no decorrer da textualidade.
2.2 Segunda carta ao amigo: uma descoberta
Na Segunda carata ao amigo,
Rodrigo fala da satisfação que sente ao ensinar Tuca nas
suas tarefas escolares, e essa experiência desperta-lhe o desejo
de se tornar professor. Por um gesto de solidariedade, a certeza do caminho
a seguir.
Há que se notar
a importância que as cartas assumem nesse contexto dialógico.
Enquanto Rodrigo escreve ao amigo, mantendo-o atualizado sobre os fatos
que vão se sucedendo na sua convivência com Tuca, Guilherme
silencia. Parece não ser relevante obter uma resposta, pois a consciência
produtora de Rodrigo cria um mundo com suas próprias cartas. Nelas
ele afirma a si mesmo as vozes com que deseja dialogar. Ao produzir a carta,
realiza-se um processo catártico, pois a catarse se define como
elemento mobilizador, em que o protagonista não apenas sente prazer,
mas também é motivado à ação. Elas são
elementos constitutivos da construção de sua identidade,
da assunção de si mesmo, e contribuem para o conhecimento,
mediante o qual vai se integrando ao contexto social de sua época.
2.3 Da pipoca ao bife; do bife à pipoca: os paradoxos que instauram o
conhecimento
Os termos “bife” e “pipoca”
transcendem sua significação usual de alimentos, para fazer
aflorar o abismo social que distancia Rodrigo de Tuca. Paradoxalmente,
são elementos que desencadeiam uma aproximação mais
estreita que os levará a uma conscientização, não
só das distinções que vigoram entre seus mundos, como
também encadeará o processo de auto-conhecimento dos protagonistas.
Ao convite de Tuca para
comer pipoca no morro, sucedeu a proposta de Rodrigo, para antes almoçarem
juntos em sua casa, e só depois subirem o morro. No momento em que
Tuca entra na casa de Rodrigo e vê a suntuosidade desta, ele se dá
conta da diferença entre suas realidades. Esse é o primeiro
momento em que tem a real consciência do abismo, que cada vez mais
se presentifica nesse relacionamento. A consciência do mundo circundante
causa um impacto que só é superado momentaneamente, quando
seus olhos encontram o bife que seria servido no almoço e que lembrava
o bife da esquina.
É que Tuca , ao sair
da escola ia ajudar a lavar carros para ganhar alguns “trocados”. Na verdade,
o serviço era para ser feito pelo faxineiro de um edifício
da rua São Clemente, que o explorava. Como Tuca precisava do dinheiro,
aceitava, apesar de estar consciente do pagamento injusto que recebia.
A exploração do trabalho infantil é comum no mundo
moderno, assim como as distâncias percorridas por esses garotos para
conseguirem dinheiro para o sustento da casa. Essa distância fica
subentendida no uso do termo “lá”:
“ O cara era faxineiro de
um edifício lá na rua São Clemente. Ganhava salário
mínimo. Então, pro dinheiro não ficar assim tão
mínimo, ele lavava os carros dos moradores do edifício e
ganhava em dobro.”
A luta pela sobrevivência
leva o cidadão a se sujeitar às injustiças, à
divisão desproporcional dos lucros. É a indústria
do consumismo atuando, exigindo, diferenciando.
Na esquina, que Tuca relembra,
há um restaurante chamado “O Paraíso dos Bifes”. O nome do
lugar por si só já sugere um lugar de delícias, que
ficavam do outro lado da parede de vidro, protegidas com ar condicionado,
distante de seu alcance físico e financeiro. Muitos carros ele teria
que lavar para um dia poder saborear um bife daqueles. O abismo representado
pela parede de vidro e pela falta de algumas “moedas”. O vidro, substância
sólida, dura e que, ao quebrar-se, dilacera, tal qual a fome e o
desejo de Tuca, sólida e dilacerante. O vidro, matéria aparentemente
frágil, mas que se insurge forte na ideologia cristalizada, é
uma representação poderosa nessa simbologia de exclusão
do outro. É a moeda que diferencia os homens e suas nações,
determinando o valor de cada um, tornando-se um dos mais evidentes signos
da degeneração humana.
Esse momento de contemplação
é quase poético, especialmente quando descreve a companhia
e a cor do bife:
A companhia do bife mudava
muito: com arroz
com salada
com aspargos
com ovo em cima...
A cor do bife mudava um
pouco: ao ponto
mal passado
bem passado. (p.34)
O almoço na casa
de Rodrigo seria a realização de um sonho: sentir pela primeira
vez o sabor e a textura de um bife. A inquietude de Tuca, ao sentar-se
à mesa, é descrita de forma metonímica. O seu desassossego
é transferido para o olho, cuja movimentação sugere
mais uma dança:
Foi só o Tuca sentar
pra almoçar que o olho não teve mais sossego: pra cá,
pra lá, pra cá, pra lá, querendo ver disfarçado
o garfo que o pai do Rodrigo pegava, o jeito que o Rodrigo dava no guardanapo,
o quê que a mãe do Rodrigo fazia com o pratinho do lado, e
mais as duas facas, e mais os três garfos, e mais a colher, e nossa!
que monte de coisa em cima daquela mesa, e o olho pra cá, pra lá,
pra cá, pra lá, na aflição de copiar (p. 35).
A imagem da mesa posta com
tantos objetos (talheres, pratos) e tantos rituais retrata a realidade
de um dia comum vivido por uma família de classe mais “elevada”.
O poder gerado por uma situação financeira estável
é também representado nos anéis que a mãe do
Rodrigo usa: “O Tuca foi ficando hipnotizado outra vez: a mão dela
tinha um anel em cada dedo”(p. 35). Anel é símbolo de poder:
religioso, quando se encontra na mão de um bispo, de um papa; cultural,
quando é um anel de graduação; financeiro, quando
ostenta opulência. É um signo ideológico. No dizer
de Bakhtin (1999, p.33),
“cada signo ideológico
é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também
um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona
como signo ideológico tem uma encarnação material,
seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo
ou como outra coisa qualquer”.
Quando a mãe de Rodrigo
percebe, resolve perguntar sobre a família do Tuca. Tira de si a
atenção do garoto para redirecionar a conversa, eximindo-se,
assim, de constrangimentos, explicações pessoais. No olhar
de Tuca silencia-se uma interrogação.
Quando o bife finalmente
é servido, um constrangimento maior antecipa a degustação
deste, pois, ao manejar os talheres, coisa com a qual não está
habituado, Tuca acaba por derrubar seu alimento no tapete. A “cena” toda
que isso desencadeia seria cômica se não fosse tão
trágica ao garoto, cuja vergonha e aflição fazem-no
perder a fome e desejar sumir. A preocupação exagerada com
o tapete e com a mancha que o bife possa deixar é narrada de forma
quase caricata, o que agride ainda mais Tuca, deixando-o apreensivo e diminuído
diante do grupo. O humano perde espaço para a “máquina”:
“O Tuca e a mesa-de-almoço
se olharam feito se despedindo; o guardanapo enxugou um suor que pingava
da testa; a cadeira foi pra trás pra deixar o Tuca levantar. E de
pé, o Tuca ficou vendo o aspirador funcionar” (p. 38).
Diante do “desastre” ocorrido
no almoço, Tuca propõe ficarem embaixo, mas Rodrigo não
topa, quer conhecer seus irmãos. Na subida, Tuca vai na frente,
quase correndo movido pelo medo da reação que Rodrigo terá
ao se deparar com uma nova realidade. Assim como Tuca, Rodrigo também
dialoga consigo mesmo enquanto caminha. Vai se perguntando como as pessoas
podem viver em casas tão frágeis, com cheiro de lixo e tanta
gente morando num espaço tão apertado. Rodrigo tinha escutado
dizer que a favela é bonita de noite, que as luzes parecem estrelas,
e lá no morro ele descobre que não há beleza, não
há estrelas. O mito vai se quebrando ao percorrer o caminho.
A pergunta que Tuca faz
a Rodrigo: “- Tá vendo que vista legal a gente tem aqui de cima?”,
alerta-o para outro ponto de observação. O outro lado é
bonito, não a favela em si. Quem olha de baixo, à noite,
vê estrelas, que a favela não tem e, quem está no morro,
vê a beleza que há lá embaixo. São visões
que se confrontam e se desafiam. Os paradoxos do mundo moderno: coexistem
o luxo e o lixo. A favela é o espaço onde se desmantelam
o mito, o sonho, a possibilidade de criar laços. É onde se
dá a conscientização da separação, muito
mais presente em Tuca, por este ser mais velho e pela maturidade gerada
precocemente pela necessidade de superação dos problemas
sócio-econômico-culturais em que está inserido e, embora
Rodrigo já se questione, ainda não assimila os intrincamentos
dessa outra realidade, pelo absurdo dessa existência que se (des)vela
irracional. Isso se manifesta num fragmento da carta de Rodrigo a Guilherme,
narrando o acontecido:
E eu tive que descer aquele
morro todinho assim: sem entender mais nada.
Sem entender por que o Tuca,
de repente, ficou com tanta raiva de mim.
Sem entender por que que
aquele mundo de gente não pode viver feito a gente e tem que viver
lá na favela do jeito horrível que eles vivem (p. 43).
A imagem das pipocas espalhadas
pelo chão e do bife estatelado no tapete faz emergir o esfacelamento
de um mundo, onde a sociedade não divide por igual, gerando a fragmentação
de um sujeito que não é uno.
É nessa carta, também,
que Rodrigo manifesta sua incompreensão diante da própria
escolha: “com tanto colega na classe foi logo acontecer de ficar amigo
é do Tuca” (p. 44). Diz que é chato ficar sem um melhor amigo
por perto e que acha que só Guilherme poderia entender o que se
passa com ele, mas que ele próprio duvida que o amigo entenda. O
foco narrativo dessa carta centra-se no diálogo interior que Rodrigo
trava consigo mesmo. No entanto não é nesse dialogismo que
o impasse se desfaz.
O lameiro se torna o ponto
crucial do conflito instaurado desde o princípio do conto. É
o lugar onde as diferenças se desintegram e fundem-se o luxo e o
lixo. A lama os iguala. A queda no lameiro, metáfora “concretizada”,
figura como o “ponto de mutação”, a partir do qual se delineia
a interação que ligará os dois mundos, cada qual inscrito
em lados opostos de um mesmo discurso: um inscrito na miséria; outro,
na superficialidade e alienação.
Após uma semana de
tentativas frustradas de reaproximação entre os amigos, o
vínculo se instala por intermédio de uma pescaria. É
a vez de Tuca ensinar algo a Rodrigo e é através das experiências
vivenciadas nessa relação interpessoal, que os abismos se
diluem, que os contrastes se interpenetram e seus mundos interagem.
O conto finaliza com mais
uma carta de Rodrigo a Guilherme, mas apresenta um dado “curioso”. O título
é: “Bilhete e PS de amigo”. O PS é a parte mais extensa do
bilhete. De forma sintética, no corpo do bilhete, Rodrigo conta
exultante que pescou um peixe. No PS, acrescenta que Tuca está ensinando
vários macetes de pescaria e que irão pescar todos os sábados,
com chuva ou sem chuva. A amizade se consolida. Dessa forma, vão-se
construindo novos sujeitos, que, cônscios dos impasses sociais, encontram
um espaço de equilíbrio, onde essa integração
se faz possível.
2.4 Rodrigo/tuca: um projeto pós-moderno de unificação de distâncias.
Tuca e Rodrigo são
personagens contrastantes, que muito pouco têm em comum, mas, na
vivência de seus conflitos intra e interpessoais, constroem um elo
possível, que, se não aproxima seus mundos, aproxima-os um
do outro.
Nos contos tradicionais,
principalmente nos de fadas, o maniqueísmo sempre se faz presente.
A dualidade não se desfaz, ao contrário, consolida-se ainda
mais no percurso narrativo e/ou discursivo. No conto, “O bife e a pipoca”,
porém, a dualidade se dilui na interação, embora frágil,
dos protagonistas. Convivem o pobre e o rico, o luxo e o lixo. Embora vivam
realidades opostas, rompem as fronteiras, desmitificam os abismos, que,
nessa história, são muitos. Vejamos.
Turíbio Carlos passa
a chamar-se Tuca, uma redução do nome de registro, poderia
ser chamado de Carlos, mas “Tuca” evidencia sua classe inferior, ao passo
que Ricardo mantém sua identidade, ao menos a social, porque ele
também vai em busca de seu auto-conhecimento, de seu “eu”. Tuca
sai de uma escola pública e vai para a particular, onde o ensino
é considerado mais forte. Esse é o primeiro ato de aproximação.
Tuca vive na favela com
mais dez irmãos, a mãe alcoólatra e um pai que sumiu
no mundo, onde a irmã mais velha é responsável pelos
irmãos, alguns dos quais não trabalham, mas “se viram”. Mora
num barraco tão pequeno que caberia na cozinha do apartamento em
que mora Rodrigo, filho único, cuja família retrata o modelo
ideológico convencional: pai, mãe, filho e, acrescente-se
aí, uma empregada. Quebra-se também o mito da família
“sagrada”. Com o desmantelamento do modelo ideal de família, novos
valores e padrões se estabelecem. Na família do morro, o
nível de tensão é mais evidente, ao passo que na família
de Rodrigo, é simulado, deixando transparecer um nível de
equilíbrio e harmonia que é apenas superficial, já
que não se vêem envolvidos sentimentos, nem calor humano.
É uma família destituída de “paixões”, em cujo
seio imperam as convenções sociais.
O bife, tão comum
na mesa de Rodrigo, é objeto de desejo de Tuca, a quem a pipoca,
alimento de fácil aquisição, é motivo de alegria.
O tapete bege da casa de Rodrigo contrapõe o lameiro e o lixo da
favela. Enquanto Rodrigo é sustentado pelos pais e tem dinheiro
para o lanche, Tuca ajuda financeiramente a família, lavando carros.
Embora estejam inseridos em realidades tão contrastantes, construíram
juntos, à custa de muitas tensões e reflexões, um
canal de ligação. Um caminho íntimo e interativo é
percorrido antes do amálgama final. Os sanduíches oferecidos
por Rodrigo a Tuca, as aulas de reforço, o convite para comer bife
e pipoca, bem como o banho de lama na favela e as cartas de Rodrigo a Guilherme,
são elementos constitutivos do processo estrutural vivenciado pelos
protagonistas. Tal processo culmina com a pescaria. É Tuca quem
ensina Rodrigo a pescar, o que nos remete ao dito popular: “Não
dê o peixe, mas ensine a pescar”. Ensinar a pescar, dar ao outro
autonomia. E a satisfação de se conseguir o próprio
peixe está refletido no fragmento textual extraído do bilhete
que Rodrigo escreve a Guilherme:
“Alô Guilherme! tudo
bem por aí?
Hoje aconteceu um negócio
sensacional: peguei um peixe!!
Um abracíssimo do
Rodrigo” (p. 47).
Nem o bife, nem a pipoca,
mas o peixe, torna-se signo de uma conexão que se crê, de
início, inviável. Marcas do pós-moderno, época
em que, segundo Villaça,
“vive-se o paradoxo, a complexidade
num momento de reciclagens, hibridismos, convivência com a diferença,
quando se rediscutem os espaços, os tempos, a história, a
subjetividade com a preocupação genealógica do que
não é nem dado, nem natural, mas construído, como
sublinha Foucault” (1996, p. 29).
2.5 A Isotopia
do conto
O conto tematiza problemas
sociais, gerados pela modernidade. Ocorre num espaço urbano, onde
coexistem edifícios luxuosos ao lado de favelas. Os personagens
são construídos a partir de uma situação realística,
sendo protagonistas duas crianças, inseridas num mundo que oferece
possibilidades desiguais, mas que, na alteridade, constroem suas identidades
e integram-se a esse exterior que também os constrói. É
através desse processo psicossocial que se dá a construção
da personalidade dos protagonistas. Os adultos são meros coadjuvantes,
exercendo um papel secundário na narrativa, cujo enfoque recai sobre
a descoberta de si mesmo como sendo outro. Não há personagens
estereotipados, apenas representação de tipos humanos como
o menino de favela que trabalha, é mais velho e com mais dificuldade
nos estudos, contrapondo com o menino de classe média de escola
particular, cuja vivência se restringe ao apartamento.
O conto é dividido
em pequenos capítulos, sem preocupação com ordem cronológica,
nem com a continuidade. Embora fragmentário, há uma unidade
seqüencial. Alternam-se os narradores, ora Rodrigo (narração
em primeira pessoa), nas cartas que escreve e que aparecem manuscritas,
ora o narrador onisciente (terceira pessoa) que revela os fatos externos
associados às reflexões internas. Assim, a narrativa se desenvolve
horizontalmente, ao apresentar a seqüência dos fatos vividos
pelos personagens e verticalmente, ao voltar-se para os problemas interiores
dos mesmos. Cada capítulo é identificado por uma ilustração
que antecipa o enfoque a ser posto.
A variedade de recursos
estilísticos, aliada à originalidade das metáforas,
cria um universo verbal peculiar e põe a criança em contato
com a riqueza da língua do universo no qual está inserida.
Alguns desses recursos podem ser constatados nas ocorrências abaixo
citadas:
“- toma – o olho do Tuca
ficou feito hipnotizado pelo lá-dentro da geladeira.” (p. 32);
“A mãe do Rodrigo
viu que o olho do Tuca não largava a mão dela:” (p. 36);
“A mãe do Rodrigo
se engasgou pequeno:” (p. 36);
“Esperou tão forte
que chegou a suar.” (p. 45).
Por ser uma narrativa de
caráter aberto, possibilita várias leituras; e, como é
comum na obra de Lygia B. Nunes, fica a “sensação” de
incompletude,
com a perspectiva de continuidade do processo. O fim projeta o começo
de uma nova história. É um passado que dialoga com um futuro
que também se delineia dinâmico e incerto.
3 Considerações Finais
O percurso narrativo
se dá num tempo moderno, pois não há reinos distantes,
nem fadas-madrinhas, nem cavaleiros heróicos a salvar o mundo. Há
apenas sujeitos “comuns” inseridos numa sociedade capitalista, onde as
desigualdades sociais são “gritantes”.
São crianças
que protagonizam este conto, no qual os adultos são meros coadjuvantes.
Todo o enredo gira em torno das diferenças sócio-econômico-culturais,
as quais geram tensões que dificultam a convivência, especialmente
das crianças que não entendem a lógica do mundo adulto,
onde imperam o preconceito e a discriminação.
As tensões, que perpassam
os protagonistas, evoluem à medida que percorrem os caminhos da
favela. É no voltar-se para dentro de si, buscando sempre compreender
a atitude do outro e a sua própria, que os conflitos vão
se diluindo. Mais do que apenas uma história, é um processo
de auto-conhecimento, no qual reconhecem o mundo em que estão inseridos.
Embora não consigam resolver os impasses sociais, encontram uma
forma de se relacionarem sem as grandes tensões causadas pelas suas
diferenças. De acordo com Magalhães (1984), isso é
característico da obra de Lygia Bojunga Nunes.
Na obra de Lygia Bojunga
Nunes, a integração no contexto social depende da construção
da identidade; esta não é uma dádiva pré-moldada,
mas uma conquista penosa através de um processo psicossocial. Um
aspecto é indissociável do outro, a interação
na sociedade não pode ocorrer independentemente do conhecimento
e assunção de si mesmo (p. 146).
A história narrada
nesse conto propõe um desafio: construir pontes sobre os abismos,
tornar possível a convivência entre os “diferentes”, vencer
as barreiras, buscar o elo que nos torna mais humanos. E é na voz
de duas crianças (personagens não estereotipados) que fala
um sujeito consciente das diferenças sociais, mas também
um sujeito, cujo desejo, talvez utópico, é ver as distâncias
diminuídas, os abismos esquecidos. É preciso notar que o
conto não tem caráter moralista, muito embora indique uma
possibilidade, de certo modo realista, de atenuar a diferença social,
muitas vezes causada pelo processo de modernização, e que
vem se agravando no decorrer da história.
Só o estilo poético
da autora, descrevendo momentos tristes e conflitantes, atenua a dor de
uma realidade que só existe, porque é criada pela ambição
desmedida de homens que não conseguem libertar-se do egoísmo.
Através de uma história criada a partir do cotidiano, nasce,
também, uma realidade “outra”, silenciada no paradoxal mundo moderno.
Referências
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov).
Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
1999.
MAGALHÃES, Ligia Cademartori.
Literatura infantil brasileira em formação.
In: ZILBERMAN, Regina, MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura
infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo:
Ática, 1984. (Coleção Ensaios, 82).
NUNES, Lygia Bojunga.
Tchau. Rio de Janeiro: Agir, 1989.
OLINTO, Heidrun Krieger.
Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São
Paulo: Ática, 1996.
VILLAÇA, Nizia.
Paradoxos do pós-moderno: sujeito & ficção. Rio
de Janeiro: UFRJ, 1996.
ZILBERMAN, Regina.
Estética
da recepção e história da literatura. São Paulo:
Ática, 1989.
Notas
Artigo apresentado à
disciplina de Estética do
Curso de Mestrado em
Ciências da Linguagem da
Universidade do Sul de Santa
Catarina - Unisul.
Professora da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina, Mestranda em
Ciências da Linguagem - Unisul.
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