Existe um texto na mente, como se dá a entender quando se diz:
“Tenho o trabalho na cabeça”? Quando a
questão se põe e alguém espera uma
resposta, isto exige uma reflexão
cuidadosa. A essa questão inicial
outras, implicadas nela, são apostas:
umas, de caráter temático, outras de
caráter teórico-metodológico. Fiz dela o
ponto de partida para uma pesquisa cujo
tema eu tratava em contexto
independente: a linguagem interior em
suas características e em seus
contrastes com a linguagem exterior,
material (materialização?), na
perspectiva da aprendizagem.
São estas as perguntas provocadoras que se colocaram
imediatamente: Quando nasce o texto? O
que é manifestação textual? A
manifestação é critério fundamental para
definir o texto? Qual o limite da
textualidade? Assim como se diz
‘linguagem interior’ pode-se dizer
‘texto interior’?
Considerando que tais perguntas remetem a um tema espinhoso para
as áreas que dele se ocupam (Filosofia,
Antropologia, Psicologia,
Lingüística,...), qual seja, das
relações que (supõe-se) existem entre
pensamento e linguagem, não pretendo
conseguir respostas inequívocas, e nem
mesmo, talvez, respostas. O que desejo é
reunir e articular algum material
disponível para compor um quadro de
reflexão eventualmente pertinente para
quem se interessa pelo discurso e suas
condições de produção. Nesse conjunto,
coloco Vygotsky como foco inovador na
compreensão do tema.
2 Discussão preliminar[1]
Eis a primeira resposta que ocorre à pergunta formulada :
“Depende do que se entenda por ‘texto’”.
E foi por aí que se começou; mas isto
não responde, de fato: trata-se apenas
do marco para conquistar uma
possibilidade de conhecimento.
Por princípio, não distanciei o texto do sujeito produtor dele.
Em grego, o termo hypokeímenon se
interpreta como sub-texto, sub-jazer, o
que existe, o que está (está sob). O
correspondente em latim é subjectum (sub-jectum),
subjacente, sujeito. Assim, há uma
relação entre texto e sujeito que a
etimologia recupera: o texto se
apresenta como aquilo que está (na
cabeça, na mente); o sujeito também
existe na textualidade, é o tópico, o
ponto de partida, o lugar de onde se
fala, é o suporte de qualquer
enunciação. Quando se elimina o sujeito
das considerações sobre o texto, não há
suporte. Diz Ducrot (3) que a distância
entre o conteúdo proposicional e a
vontade, ou entre o dictum e o modus,
entre a objetividade e a subjetividade,
entre o racional e o afetivo não pode
ser mantida. Não há conteúdo
proposicional independentemente do
sujeito que o manifesta, pois o
“conteúdo” só parece o que é na medida
em que foi enunciado por alguém, em
circunstâncias definíveis.
Quando se trata a língua pela língua, o texto pelo texto, o
enunciado pelo enunciado tenta-se
eliminar algo que não é eliminável, o
sujeito, e, por conseqüência, o próprio
texto, na medida de sua integração
original. Mata-se o sujeito e, com ele,
o texto. O sentido do enunciado só
existe na exata medida de sua
enunciação; sem enunciação tem-se apenas
significação, disponível, aliás, só
porque houve enunciações anteriores e
porque houve fixações passíveis de
objetivação, restando a ilusão — tanto a
ilusão objetiva quanto a subjetiva.
A psicanálise, diga-se en passant, tem sido mais sensível que a
lingüística em geral a respeito dessa
relação: ela (a psicanálise) só pensa a
linguagem na medida em que por trás dela
existe um sujeito que sofre, que
“suporta” essa linguagem.
Para tratar o tema, as questões da introdução são norteadoras;
elas não podem, contudo, ser respondidas
pontualmente. O primeiro passo, então, é
fazer um balanço de algumas concepções
presentes em autores cujos fundamentos
epistemológicos são diferenciados.
3 Linguagem e pensamento - Saussure
Em apenas dois pontos do Cours, em capítulos diferentes, Saussure
faz referência a algo que pode ter
analogia com a noção de “discurso
interior”: Primeira Parte, capítulo I,
Natureza do signo lingüístico; Segunda
Parte, capítulo IV, O valor lingüístico.
A numeração a seguir diz respeito a
estas duas partes.
1. Saussure afirma que os dois termos implicados no signo
lingüístico são de natureza psíquica e
se ligam no cérebro pelo elo da
associação: O signo lingüístico une não
uma coisa e um nome, mas um conceito e
uma imagem acústica (1976, p. 98).
É preciso salientar que a “imagem acústica” é apenas uma espécie
de empreinte [marca, pegada] psychique,
que é, segundo explicação dos editores
em nota de rodapé, a representação
natural da palavra como fato de língua
virtual, nada tendo a ver com
realização. O aspecto motor é aqui
marginal. De qualquer forma, Saussure
admite que essa imagem é “sensorial”. O
caráter psíquico, diz ele, aparece
claramente quando observamos nossa
própria linguagem: Sem mexer os lábios
nem a língua, podemos falar a nós mesmos
ou recitar mentalmente uma peça em
versos (p. 98).
2. Para explicar o conceito de ‘valor lingüístico’, Saussure leva
em consideração os dois elementos que,
segundo ele, entram em jogo no
funcionamento da língua: as idéias e os
sons. Diz que o pensamento em si é uma
massa amorfa, ou ainda, é como uma
nebulosa onde nada é necessariamente
delimitado. Assim, não há idéias
pré-estabelecidas, nada é distinto antes
do aparecimento da língua. Da mesma
forma os sons, segundo ele, não são
entidades circunscritas previamente. Por
isso, ele representa o fato lingüístico
(a língua) como uma série de subdivisões
contíguas desenhadas simultaneamente no
plano indefinido das idéias confusas (A)
e naquele não menos indeterminado dos
sons (B) (p. 156).
Figura 1 - Esquema de Saussure:
Saussure explica que a língua não é, em relação ao pensamento,
a criadora de um meio fônico material
para a expressão das idéias (o que
também Vygotsky critica); seu papel é
servir de intermediário entre o
pensamento e o som, em condições tais
que sua união resulta necessariamente em
delimitações recíprocas de unidades (p.
156). Dessa forma o pensamento, caótico
por natureza, é forçado a precisar-se,
decompondo-se. Não há, neste processo,
nem materialização dos pensamentos, nem
espiritualização dos sons: ... o
“pensamento-som” implica divisões e
[...] a língua elabora suas unidades
constituindo-se entre duas massas
amorfas (p. 156). Saussure usa algumas
comparações para explicar este fenômeno.
Veja-se uma: a língua é como uma folha
de papel: o pensamento é a frente e o
som o verso. A combinação dessas duas
ordens, diz ele, produz uma forma (e não
uma substância).
A busca da natureza formal da língua (langue, objeto de análise,
e não simplesmente idioma) é que o leva
a situar as unidades lingüísticas como
psíquicas. Para ele, a tentativa de
abordar os conceitos, ou melhor, as
idéias (que ele considera confusas antes
da semiotização), cabe à psicologia
pura; elas só interessariam ao lingüista
como unidades conceituais, portanto com
uma face significativa, compondo o
signo. Ele salienta essa natureza
psíquica desde o início da obra, quando,
a partir do circuito da fala
(falante-ouvinte), busca caracterizar o
lugar da langue nos fatos de linguagem.
Mas é interessante observar o seguinte:
uma vez caracterizado o objeto da
ciência lingüística — a langue —,
Saussure a aproxima e a distingue de
outros sistemas, tais como a escrita, o
alfabeto dos surdos-mudos, os ritos
simbólicos, as formas de polidez. E
concebe uma ciência que se preocupasse
com todos esses signos e seu
funcionamento na vida social: seria uma
parte da psicologia social e se chamaria
semiologia (do grego semeion); ao
psicólogo caberia determinar o lugar
exato da semiologia.
Para dar uma idéia do núcleo do programa saussuriano, cito Dosse
(1993):
Ele dá a sua solução para o velho problema formulado por Platão
no Crátilos. Com efeito, Platão
opõe duas versões das relações
entre natureza e cultura:
Hermógenes defende a posição
segundo a qual os nomes
atribuídos às coisas são
arbitrariamente escolhidos pela
cultura e Crátilos vê nos nomes
um decalque da natureza, uma
relação fundamentalmente
natural. Esse velho debate,
recorrente, encontra em Saussure
aquele que vai dar razão a
Hermógenes com a sua noção de
arbitrário do signo.
[...] O essencial da demonstração consiste em fundamentar o
arbitrário do signo, em mostrar
que a língua é um sistema de
valores constituído não por
conteúdos ou produtos de uma
vivência mas por diferenças
puras. Saussure oferece uma
interpretação da língua que a
coloca resolutamente do lado da
abstração para melhor a separar
do empirismo e das considerações
psicologizantes. Funda assim uma
nova disciplina, autonomizada em
relação às outras ciências
humanas: a lingüística. (p.
65-66).
Fica claro que, nessa abordagem, o essencial é o fechamento da
língua sobre si mesma. O signo, tal como
definido, só envolve a relação entre o
conceito (significado) e a imagem
acústica (significante). O mundo da
referência não faz parte do esquema. O
estudo da língua é a análise de um
código em suas relações internas,
separado de suas condições de emergência
e de seu sentido. Assim, nessa
lingüística não há lugar para o sujeito
nem para o sentido.
Se quiséssemos começar a pensar numa resposta à pergunta Existe
um texto na mente? a partir do quadro
acima, encontraríamos as seguintes
restrições: 1) a abordagem não permite
sair dos limites da língua; 2) é
impossível imaginar o texto como unidade
verificável; 3) o texto é produzido por
um sujeito que aparece como indivíduo, o
qual faria uso da língua, o que não está
em questão nessa abordagem.
Quando Saussure diz, no Cours, que podemos falar a nós mesmos sem
articulação motora, está apenas
procurando dar uma idéia do caráter
psíquico do signo, unidade de língua. Aí
já se está no plano da fala, ou parole,
que é individual. Por interna que seja
essa fala, ela aparece simplesmente como
uma versão silenciosa da fala audível.
Ou seja, nenhum processo é aí analisado.
O interesse da questão apresentada, por
outro lado, está justamente na percepção
dos conflitos que envolvem a escritura
do texto, a partir do momento em que a
mente consciente projeta e planifica,
“ousando” pensar, em certo nível, que há
alguma coisa construída antes que uma
forma gráfica se inicie. Talvez se possa
dizer, para tal sensação: há uma forma
interna, idealizada, possivelmente não
muito opaca, sobretudo quando há tempo
suficiente para desenvolver essa fala
interna, jogar com imagens de
interlocutores e, finalmente,
memorizar!
4 Precisamos de uma pedagogia da escrita?
Com certeza não é fácil compor um texto escrito, mesmo que se
trate de um simples bilhete. Esse
esforço já foi realizado por muitas
pessoas, desde o processo de
alfabetização. Contudo, poucos
concretizam textos longos: artigos,
comunicações, relatórios, teses..., para
não falar de textos que primam pela
estética. Isto significa que, embora não
saibamos quase nada do que se passa na
mente, mesmo sentindo-a plenamente
semiótica, estamos conscientes de que
existe uma grande distância entre
pensar, falar e escrever; e que, apesar
disso, há uma interdependência, há um
certo grau de vinculação que, ora mais,
ora menos, põe-nos indefesos diante da
incompreensão sobre o porquê das
dificuldades.
Mas também é possível que, para a maioria das pessoas — aquelas
que pouco ou nada escrevem —, seja
suficiente encarar a escrita como um
substituto do oral. Não é de hoje que
“aprender a grafar o que se diz”, ou
ainda “aprender técnicas para passar do
oral ao escrito” é considerado
metodologicamente correto para entrar no
mundo visual da língua escrita.
Entretanto, se uma pedagogia da escrita se impõe — ninguém o
negará — é que aprender a notação
convencional para grafar, estabelecendo
a correspondência sons/letras, não
basta. Fosse tão simples a lição, todos
os alfabetizados poderiam produzir pelo
menos bons bilhetes, bons cartazes, boas
cartas. Ora, cada vez mais se observa
que a escrita é suporte de um modo de
comunicação autônomo. Por princípio, o
que se escreve não é algo que se fala
primeiro, para ser transformado em
seguida em sinais gráficos; pelo
contrário, de modo geral as interações
orais e as interações escritas são
mutuamente exclusivas
Foucambert (1994) salienta que escrever é criar algo suscetível
de funcionar para um leitor, e tornar
isso possível exige a antecipação desse
funcionamento, antecipação que se apóia
numa experiência pessoal de leitor.
Isto, é claro, leva a vincular leitura e
escritura. Escrever, diz o autor, é
inventar algo “jamais lido”, porém a
partir de uma teoria [...] que tenta
organizar todos os componentes da
experiência de leitor de quem escreve
(p. 76). Escreve-se somente a partir do
que se compreende que acontece na
leitura: escrever obriga a teorizar suas
estratégias de leitura, enquanto ler
obriga a teorizar suas estratégias de
escrita (p. 77, destaque meu).
A lição que corrobora minha própria experiência é esta, nas
palavras de Foucambert (ibid., p. 77):
Escrever é precisamente trabalhar a
linguagem escrita para descobrir o que
se tinha a dizer. Outros autores
partilham a mesma concepção, que tem
implicações importantes: ninguém tem
simplesmente “algo a dizer” que pode ser
imediatamente escrito. Pergunto, então:
o que havia “na cabeça” que pudesse
corresponder a esse ter algo a dizer?
Quem diz que já tem algo na cabeça,
crendo que basta aprender técnicas para
redigir, teria portanto uma concepção
errônea do processo. Mas a pergunta
importante aqui é: esse algo que tenho
na cabeça constitui um texto? Se sim, de
que natureza? Constituiria o mesmo texto
que ainda vai se manifestar na escrita?
Se não, por que não? Seria já um texto,
embora diferente de sua manifestação?
Outra afirmação que cria conflito é a de Roland Barthes (referido
por Foucambert): ele diz que não se
trata, para escrever, de usar uma
ferramenta para expressar algo
preexistente, mas do trabalho sobre uma
matéria-prima. O confronto que se cria
com esse trabalho Foucambert o chama
“manipulação do significante”. Claude
Simon (citado por esse autor) explicita
de maneira extraordinária o conflito do
escritor:
Quando estou frente a uma folha em branco, vejo-me confrontado
com duas coisas: por um lado, o
turvo magma de emoções,
lembranças, imagens, que está em
mim; por outro, a língua, as
palavras que eu procurarei para
dizê-lo, a sintaxe pela qual
serão ordenadas e no seio da
qual, de algum modo, irão se
cristalizar. De imediato, uma
primeira constatação: jamais se
escreve (ou descreve) algo que
tenha acontecido antes do
trabalho de escrever; escreve-se
aquilo que se produz (e isso em
todos os sentidos da palavra)
durante esse trabalho, no seu
decorrer; e isso não resulta do
conflito entre o mui vago
projeto inicial e a língua, mas,
pelo contrário, resulta de uma
simbiose entre ambos, a qual
leva a que, pelo menos comigo, o
resultado seja infinitamente
mais rico do que a intenção. (p.
78-79)
Tais palavras contrariam a idéia de que se possa conceber algo
tão bem que baste revesti-lo com
palavras. Assim, a preocupação
leibniziana de uma “álgebra”
lingüística que permitisse a não
distorção dos pensamentos (lingua
characteristica universalis) perde muito
de seu tom queixoso com referência à
linguagem — ilusão que talvez muitos
ainda tentem justificar. No quadro
acadêmico, por exemplo, vemos o
estudante que, para explicar um fracasso
de escritura, explica que na cabeça
estava tudo claríssimo ... Em todo caso,
a recorrência de justificativas
semelhantes deveria fazer pensar com
mais seriedade ainda o de que ninguém
duvida: é necessária uma pedagogia da
escrita.
Sem dúvida a interação oral também sofre essas restrições, mas de
qualquer forma pode-se dizer que o que
resulta escrito não é mera transposição
do oral: tem suas especificidades.
Portanto, pode-se falar de outra
natureza, como lembra Schlieben-Lange
(1993).
O discursivo de tal processo aparece nesta observação de
Foucambert: O que é paradoxal na escrita
é a dupla imposição de uma configuração
linear própria da língua e de uma
totalidade imediatamente acessível que
caracteriza o texto escrito. Com efeito,
este caráter se sobressai e torna a
escritura bem mais que uma simples
questão notacional (fixação material).
Ricoeur (s. d.) salienta que o que se
deseja inscrever é um evento: não se
busca simplesmente fixar a gramática da
língua em questão (como parece acontecer
prioritariamente nos tradicionais
exercícios de redação), mas basicamente
inscrever o discurso. É o discurso que
deve emergir numa forma gráfica, não
simplesmente uma gramática.
Uma das implicações desse processo é que a relação
escritura/leitura não pode ser tomada
como correspondente à relação
fala/escuta; a marca preponderante da
escritura é a distância/distanciamento.
Foucambert (ibid.) dirá: O que se
exprime de maneira linear,
paradoxalmente, é uma estrutura global e
imediata (p. 80). O que se exprime, eu
repito com Ricoeur, é o discurso, e não
uma soma de frases. Daí que, embora a
escritura implique o movimento temporal,
o que a rege, por princípio, é o espaço
do texto — ela é um artefato realizado
para a modulação visual.
Claude Simon (apud Foucambert) diz que expressa uma estrutura na
organização da ‘paisagem interna’. Esta
paisagem interna é que cria problema, ou
melhor, é o fenômeno-questão. A paisagem
está no corpo e na cabeça. Ela se mostra
já como um texto?
Uma das características da escrita é que obriga a olhar o real de
uma nova perspectiva; deve distanciar-se
dele, teorizá-lo, explorar sua ordem.
Logo, escrever é assumir uma outra
maneira de pensar, de ver o mundo. Não
se trata apenas de nomear. Esse jogo é
chamado aqui de “confecção do mapa a
partir da paisagem”, e tal coisa
institui um conflito. O pensamento
constrói-se na linguagem, porém ele
transforma a linguagem que o constrói
(ibid., p. 81) — processo dialético.
Essa perspectiva também aparece
sustentada por Luia, Vygotsky, Bakhtin
(em análise mais adiante). ...devido às
imposições do texto, a escrita é, ao
mesmo tempo, a invenção de um ponto de
vista sobre o mundo (Foucambert, p. 81).
De certa forma, as generalizações já existentes nas palavras
(seus significados, conforme a
perspectiva de Vygotsky) são uma riqueza
e uma restrição ao redator, e isto
constrói parte do conflito, que deve ser
resolvido: os significados registrados
já aparecem como pontos de vista,
constituem visão de mundo.
5 Uma linguagem interior estruturada?
Luria(1986) nos explica que a ação voluntária da criança inicia
num processo de subordinação da ação à
instrução verbal do adulto. Trata-se de
uma função compartilhada, interacional,
que se transforma progressivamente num
processo intrapsíquico pela
interiorização. Assim se forma, nessa
perspectiva, a linguagem interior. Numa
certa etapa de seu desenvolvimento, a
criança tem uma ação voluntária
autônoma: a subordinação da ação se dá
agora em relação à própria linguagem da
criança. Pergunta-se, então: como se
forma essa linguagem interna, que regula
os comportamentos e os atos voluntários,
e que estrutura tem — se de fato a tem?
Segundo Luria, durante muito tempo pensou-se que a estrutura
dessa linguagem interior era semelhante
à da linguagem externa. Foi com Vygotsky
(v. discussão adiante) que começaram as
mudanças fundamentais sobre a concepção
de linguagem interior. Na teoria de Jean
Piaget, a criança nasce como um ser
autístico, vivendo em si mesma com
pouquíssimo contato com o mundo
exterior. Daí a chamada “linguagem
egocêntrica”. A socialização da criança
se faria apenas progressivamente, e com
ela a linguagem se tornaria um meio de
comunicação. A linguagem egocêntrica
seria um “rastro do autismo infantil”.
Vygotsky inverteu este caminho para explicar a linguagem
interior, partindo do princípio de que
desde o nascimento a criança é um ser
social. Assim, o social do comportamento
da criança não viria progressivamente
depois da linguagem autística. A
evolução, segundo Vygotsky, se dá a
partir do momento em que a criança pede
ajuda ao adulto, e depois analisa ela
mesma a situação com a ajuda da
linguagem, buscando saídas para seus
problemas; finalmente, com a linguagem
começa a planejar o que não pode fazer
através da ação imediata. É o que dá
origem à função intelectual, reguladora
da conduta. Essa interiorização da
linguagem provoca a formação de novos
tipos de atividades psíquicas: as
funções analíticas, de planejamento e de
regulação, inicialmente inerentes à
linguagem do adulto: ... com a aparição
da linguagem interior surge a ação
voluntária complexa como sistema de
auto-regulação, que se realiza com a
ajuda da própria linguagem da criança,
no início exteriorizada e logo
interiorizada (Luria, p. 111).
As teses de Vygotsky têm sido confirmadas por muitos estudiosos.
Segundo Luria, isto permite abordar um
importante problema da psicologia: o da
estrutura interna e origem do ato
voluntário. Ato voluntário se entende
como uma ação de estrutura mediada que
se apóia em meios verbais, os quais
compreendem não só a linguagem externa
como meio de comunicação, mas também a
linguagem interna, reguladora da
conduta. (p. 111). O ato voluntário é
visto como um processo de origem social;
o papel do meio é cumprido basicamente
pela linguagem interior.
Qual a estrutura dessa linguagem interior?
Não se trata simplesmente uma linguagem “para si”, ou seja, a
linguagem externa privada de sua parte
motora — ou ainda, apenas uma duplicação
dela. Elas já diferem em velocidade: no
ato intelectual a velocidade é tão
grande que seria impossível dizer a si
mesmo toda uma frase e muito menos todo
um raciocínio. Luria conclui que a
linguagem interior, que possui um papel
regulador ou planificador, possui uma
estrutura completamente diferente,
reduzida, abreviada (p. 111-112). Foi o
estudo da conversão da linguagem externa
em linguagem interna, em crianças, que
levou a essa conclusão. Segundo Luria,
constata-se, no processo: primeiro, a
linguagem passa de audível a sussurro e
depois a interior; ela se abrevia,
transformando-se de desdobrada em
fragmentária e interna.
O traço marcante desta nova linguagem é, para ele, o mostrar-se
como basicamente predicativa.
Predicativo contrasta com nominativo; o
primeiro tem como núcleo o verbo; o
segundo, o nome. Ele quer dizer que o
tema (aquilo de que se trata, o problema
a resolver) já está incluído na
linguagem interior e não necessita ser
designado especialmente. A segunda
função semântica dessa linguagem, a
significação do que corresponde dizer
sobre o tema, que ação cabe realizar, é
o que resta. Seria o rema. Assim conclui
Luria:
Desta forma, a linguagem interior, por sua semântica, nunca
designa o objeto, nunca possui
um caráter nominalmente
restrito, ou seja, não possui
“sujeito”; a linguagem interior
indica o que é necessário
realizar, em que direção deve
ser orientada a ação. Dito de
outra forma, ao permanecer
interna e amorfa por sua
estrutura, sempre conserva sua
função predicativa (p. 112).
A função predicativa diz respeito, então, à hipótese de a
linguagem interior designar somente o
plano da ação futura, e sua
possibilidade de desdobramento vem
exatamente de que se origina de uma
linguagem externa, desdobrada. Ela
funcionaria sempre como um projeto. Essa
idéia é produtiva, vale a pena levá-la
adiante.
A segunda grande pergunta que Luria (se) coloca é: que mecanismos
cerebrais garantem o papel regulador da
linguagem, no início externa e logo
tornada interna? Que mecanismos
cerebrais se encontram na base do ato
voluntário consciente do homem?
Suas respostas constituem ainda hoje apenas boas hipóteses, e
estão vinculadas a observações feitas em
pacientes com afecções locais do
cérebro. Segundo ele, os mecanismos
cerebrais da função reguladora da
linguagem não coincidem com os
mecanismos que asseguram os aspectos
sonoros ou semânticos dos processos
verbais (p. 113). Isto significa
que, mesmo que a linguagem seja alterada
em seu aspecto fonemático e
articulatório por alguma afecção
cerebral, não perde necessariamente sua
função reguladora.
Os setores temporais posteriores e os setores pós-centrais do
hemisfério esquerdo do cérebro, que são
importantes para a organização
fonemática e cinestésica da linguagem,
não possuem esse significado para a
organização da função predicativa da
linguagem interior, e portanto para a
regulação do ato voluntário. Também não
têm a mesma significação os setores
parietais inferiores e
parieto-occipitais, zonas do córtex do
hemisfério esquerdo que garantem a
compreensão das construções
lógico-gramaticais. Os estudos mostraram
(ainda segundo Luria) que os setores
importantes para a função reguladora da
linguagem interior são as zonas
anteriores do córtex cerebral, em
particular do hemisfério esquerdo —
zonas que, por sinal, têm uma estrutura
morfológica diferente da dos outros
setores apontados.
Para Luria, a alteração do aspecto predicativo da linguagem
exterior provoca grave alteração da
linguagem interior, que deixa de
garantir o caráter fluente da alocução.
Essas alterações, segundo observações
feitas, correspondem a afecções nos
setores pré-motores do córtex, um dos
grupos em que se dividem as zonas
anteriores do córtex cerebral; o segundo
grupo é formado pelos setores frontais
propriamente ditos do córtex. Enquanto
os aspectos motores e a linguagem
externa se conservam em pacientes com
lesão nessa área, altera-se
profundamente a dinâmica interna do ato
voluntário organizado, planejado em
conjunto e a atividade verbal orientada.
(p. 116). Perdendo o apoio da linguagem
interna (na sua qualidade de projeto), o
paciente apresenta uma patologia
gravíssima, segundo os termos de Luria.
Falta-lhe a função reguladora da
conduta: a atividade organizada passa a
ser substituída “por ações imitativas ou
perseveratórias”. Em outras palavras, a
afecção dos lóbulos frontais do cérebro
provoca a alteração da função reguladora
da linguagem, deixando conservado seu
aspecto externo. Ou seja, ele reage a
certas instruções verbais segundo o
modelo visual que lhe é mostrado, e não
segundo as instruções.
Luria considera, assim, que é indiscutível a participação dos
lóbulos frontais do cérebro na
realização do ato voluntário, ficando em
aberto as questões relativas aos
mecanismos fisiológicos que estão na
base desses fenômenos. Acrescente-se que
estudos bem recentes têm evidenciado que
as direções apontadas por Luria são
corretas (Cf., por exemplo, Daniel
Goleman, 1995, e António Damásio, 1996).
Anote-se também: a função reguladora da linguagem é chamada aqui
igualmente de função pragmática, que
portanto está intimamente vinculada à
linguagem interior.
6 Raízes genéticas do pensamento e da linguagem
Como salientei na introdução, Vygotsky aparece como uma figura
central para a compreensão das relações
linguagem/pensamento, que ele focalizou
do ponto de vista genético, amarrando-as
sempre ao histórico e ao cultural da
existência. Por isso, este tópico
privilegia sua abordagem em dois
trabalhos fundamentais: Pensamento e
linguagem (sua última obra, editada em
1934) e Teoria e método em psicologia.
Em Pensamento e linguagem, Vygotsky enfatiza que é indispensável
tratar do discurso interior para abordar
o problema da relação entre pensamento e
linguagem, na medida da sua importância
para a atividade de pensar. Por outro
lado, entre esse discurso e o discurso
externo as dessemelhanças são profundas:
trata-se de dois processos
funcionalmente diferentes (adaptação
social, neste, e adaptação pessoal,
naquele) e estruturalmente diferentes (o
discurso interior prima pela economia
extrema, até se tornar praticamente
irreconhecível).
Daí que Vygotsky não acredite que possam ser geneticamente
paralelos e convergentes, como alguns
estudiosos sugeriam. Por outro lado,
hipotetiza que a fala é interiorizada
psicologicamente antes de ser
interiorizada fisicamente (processo da
fala egocêntrica). Pela forma, o
discurso interior pode aproximar-se
muito do discurso externo ou tornar-se
mesmo igual a este, quando serve de
preparação para o discurso externo (como
quando se pensa numa conferência que se
vai proferir). Note-se que esta
observação sugere, contrariamente a
outras já apontadas aqui, que seria
possível um texto de caráter mental
(parece-me mais provável que se trate de
uma analogia)... De qualquer modo,
continua a haver uma interação constante
das operações externas e das internas:
cada uma das formas converte-se
incansavelmente na outra.
Vygotsky pensa nesse processo, graficamente, como dois círculos
em intersecção. Nas regiões sobrepostas
pensamento e linguagem coincidem,
produzindo o pensamento verbal — que,
por sua vez, não engloba todas as formas
de pensamento nem todas as formas de
linguagem. Isto quer dizer: haveria um
aspecto prático do pensamento que não
inclui imagem verbal, assim como haveria
formas de atividade lingüística que não
requisitam processo de pensamento (por
exemplo, recitar um poema que se sabe de
cor). Vygotsky quer dizer que não ocorre
aí atividade intelectual no sentido
próprio do termo. Conclui, então, que a
fusão entre o pensamento e a linguagem,
tanto nos adultos como nas crianças, é
um fenômeno limitado a uma área
circunscrita (v. figura abaixo).
Figura 2 – Área de intersecção entre pensamento e linguagem
Sumariando a sua investigação sobre o discurso interior, Vygotsky
conclui
... que o discurso interior se desenvolve através de uma lenta
acumulação de mudanças
funcionais e estruturais, que se
desliga do discurso externo da
criança simultaneamente com a
diferenciação das funções social
e egocêntrica do discurso, e
finalmente que as estruturas do
discurso dominadas pela criança
se transformam nas estruturas
básicas do seu pensamento”
(1979, p. 73).
Daí a tese: o desenvolvimento do pensamento se encontra
determinado pela linguagem, ou seja,
pelos instrumentos lingüísticos do
pensamento e pela experiência
sócio-cultural da criança. Acrescente-se
que o pensamento verbal não aparece como
uma forma natural de comportamento,
inata (e nisso destoa de Santaella,
conforme apresento adiante), mas está
vinculado ao processo histórico-cultural
e tem propriedades e leis específicas
que não podem ser encontradas nas formas
naturais do pensamento e do discurso. Em
última análise, o desenvolvimento do
comportamento humano sofre o governo
pelas leis gerais do desenvolvimento
histórico da sociedade humana. Essa é a
perspectiva do materialismo histórico e
dialético.
No capítulo Pensamento e linguagem Vygotsky explora
particularmente a questão do método de
busca das relações entre pensamento e
linguagem, iniciando pelo
estabelecimento de uma unidade, ou seja,
o que, sob uma forma simples, retém as
propriedades do todo. A unidade do
pensamento verbal que ele encontra é o
significado da palavra: O significado
duma palavra representa uma amálgama tão
estreita de pensamento e linguagem que é
difícil dizer se se trata de um fenômeno
de pensamento, ou se se trata de um
fenômeno de linguagem (p. 159). Talvez
se possa representar isso no seguinte
gráfico (uma versão da representação
proposta acima):
Uma palavra sem significado constitui um som vazio, daí
considerar-se o significado um critério
da palavra e um componente
indispensável. Do ponto de vista da
psicologia, um significado indica uma
generalização, um conceito — que, por
sua vez, é tido como ato de pensamento. Vygotsky conclui:
O significado das palavras só é um fenômeno de pensamento na
medida em que é encarnado pela
fala e só é um fenômeno
lingüístico na medida em que se
encontra ligado com o pensamento
e por este é iluminado. É um
fenômeno do pensamento verbal ou
da fala significante — uma união
do pensamento e da linguagem
(1979, p. 159).
Como se percebe, trata-se daquele “mistério” a que Saussure se
refere quando define o valor
lingüístico: o pensamento torna-se
preciso pela decomposição (articulação):
o pensamento-som implica divisões, e a
língua elabora suas unidades
constituindo-se entre duas massas
amorfas (1976, p. 156. Cf. neste
trabalho o tópico Linguagem e pensamento
- Saussure).
Aí está a tese fundamental de Vygotsky. Dela decorre outra: o
significado das palavras evolui; na
evolução histórica da linguagem a
própria estrutura do significado e a sua
natureza psicológica se transformam
também. Não é apenas o conteúdo de uma
palavra que se altera, mas a forma como
a realidade é generalizada e refletida
numa palavra (p. 160). Todo e qualquer
pensamento é uma generalização (p. 164).
Como vemos, trata-se de uma boa premissa
para a análise da relação entre “texto”
interior (permitam-me as aspas) e texto
exterior. Com efeito, já que se trata de
generalização, torna-se bloqueio para a
escritura, que corresponde à inscrição
de eventos — como sugeri no final do
tópico “Precisamos de uma pedagogia da
escrita?” Poderíamos dizer que o efeito
social de cristalização passa pelo de
modelização, de modo que os conceitos,
marcas (referencial — ou significações
disponíveis, conforme Bakhtin) para a
expressão de circunstâncias situacionais
se revelam um aparato indispensável e ao
mesmo tempo limitador.
Com o princípio da evolução os significados das palavras são
vistos como formações dinâmicas. A
relação entre pensamento e linguagem se
modifica na exata medida da alteração
dos significados. Essa alteração, por
outro lado, resulta da prática. E então
Vygotsky passa a estudar o papel do
significado no processo de pensamento. O
experimento consistiu em considerar as
relações pensamento/palavra no cérebro
de adultos. Sua diretriz foi:
...a relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa mas
um processo, um movimento
contínuo de vai-vem entre a
palavra e o pensamento; nesse
processo a relação entre o
pensamento e a palavra sofre
alterações que, também elas,
podem ser consideradas como um
desenvolvimento no sentido
funcional. As palavras não se
limitam a exprimir o pensamento:
é por elas que este acede à
existência (1979, p. 165).
O pensamento flui como uma corrente interna através de uma série
de planos, e é preciso investigar esses
planos que o pensamento percorre antes
de se “encarnar” nas palavras.
Primeira distinção: há dois planos do discurso: interno,
significante, semântico; externo,
fonético (nesse aspecto Vygotsky parece
próximo de Saussure). Cada um tem leis
de movimento específicas, que formam uma
unidade complexa – mas há movimentos
independentes na esfera fonética e na
esfera semântica. No domínio da fala
exterior, a criança progride da parte
para o todo: de palavras para frases e
seqüências frasais. Relativamente ao
significado, entretanto, a primeira
palavra da criança é uma frase completa
(é o que Gustave Guillaume chamou de
holofrase). Semanticamente a criança
parte do todo, e mais tarde domina as
unidades semânticas separadas. Isto
mostra a importância de se distinguir o
aspecto fonético do discurso de seu
aspecto semântico. Contudo, embora os
movimentos não sejam coincidentes, não
são também independentes um do outro. Em
última análise, a estrutura da linguagem
não reflete simplesmente a estrutura do
pensamento, como num espelho; por isso,
não se pode vestir o pensamento com
palavras, como se de um ornamento se
tratasse (p. 166). O pensamento encontra
na fala sua realidade e sua forma.
Nos adultos, a divergência entre o fonético e o semântico é mais
nítido ainda. Exemplo de Vygotsky: em O
relógio caiu a ênfase e o significado
podem variar com as situações. Se noto
que o relógio parou e pergunto por que
terá acontecido, a resposta é O relógio
caiu. Sujeito gramatical e psicológico
coincidem. Se ouvir um barulho no quarto
ao lado e indagar o que aconteceu, e
receber a mesma resposta, o sujeito e o
predicado psicológicos se inverterão.
Alguma coisa tinha caído; o relógio
completa a idéia (seria possível usar
esta ordem: O que caiu foi o relógio.
Então o sujeito gramatical e o
psicológico coincidiriam). Qualquer
parte de uma frase pode tornar-se o
sujeito psicológico, a parte portadora
da ênfase fundamental (ou seja, o que se
tem muito comumente chamado tópico); por
outro lado, por trás de uma estrutura
gramatical podem ocultar-se significados
diferentes. A mais simples exclamação,
diz Vygotsky, não reflete uma
correspondência constante entre som e
significado – pelo contrário, há um
processo complicado. As expressões
verbais não podem nascer completamente
formadas, devem desenvolver-se
gradualmente. Por isto, nos eventos
reais de fala, em que se formam
fenômenos de linguagem, muitas vezes
interpretamos conforme a modelização
vigente, e podemos incorrer em equívoco.
Vygotsky propõe-se em seguida a explorar o plano do discurso
interno (para além do plano semântico).
A expressão se tem prestado a confusões
e tem sido usada para designar coisas
diferentes. “Originalmente”, diz ele,
parece que se chamava discurso interior
à memória verbal. Ora, a memória das
palavras é um dos componentes do
discurso interior, mas não o único.
Segunda acepção: o discurso interior
seria um discurso externo truncado,
linguagem sem som ou linguagem subvocal
(suponho que seja esta acepção a
utilizada por Saussure). Vygotsky a
rejeita: a “locução” silenciosa das
palavras não equivale ao processo
integral do discurso interior. Terceira
acepção: discurso interior é tudo o que
precede a parte motora da fala. Pela
amplitude, contudo, perde-se em
objetivação.
Assim caracteriza Vygotsky o discurso interior:
a) discurso para o próprio locutor (ou melhor, para si; o
discurso externo se volta para
os outros). A ausência de
vocalização se dá apenas como
conseqüência da natureza
específica do discurso interior:
não aparece como antecedente do
discurso exterior, nem como sua
reprodução na memória, surge
antes como o contrário dele:
volta-se para dentro, para o
pensamento. Assim, as estruturas
têm de ser diferentes. E se esse
discurso pode ter valor pessoal,
concluo que não o tem
socialmente falando. Como, em
última análise, o sujeito
locutor só faz sentido em seu
caráter de ser social, o seu
“texto” na cabeça não pode ser
avaliado pelo outro. Ele é um
fragmento do processo... Por
outro lado, ao contínuo
desdobramento em discurso
exterior corresponde um retorno
benéfico à organização da vida
mental (processo circular que
tende a sofisticar-se);
b) do ponto de vista genético: um estágio posterior de
desenvolvimento do discurso
egocêntrico na criança: este
transforma-se no discurso
interior (o discurso egocêntrico
desaparece paulatinamente a
partir do início da
escolaridade) — ele seria, pois,
a chave para a compreensão do
discurso interior, na medida em
que pode ser observado e
estudado experimentalmente.
Como já destacado (v. Luria), Vygotsky quer provar
(contrariamente ao que pensa Piaget) que
o discurso egocêntrico é um fenômeno de
transição entre o funcionamento
inter-físico e o funcionamento
intra-físico, quer dizer, da atividade
social e coletiva da criança para a sua
atividade mais individualizada — modelo
de desenvolvimento este que é comum a
todas as funções psicológicas mais
elevadas (p. 174). Mais: O discurso de
si para si tem origem na diferenciação
do discurso para os outros. Na medida em
que a trajetória principal do
desenvolvimento psicológico da criança é
uma trajetória de progressiva
individualização, esta tendência
reflete-se na função e na estrutura do
seu discurso (p. 174).
Essa concepção do discurso egocêntrico é a base para aquela do
discurso interior como uma linguagem que
está a serviço da orientação mental, da
compreensão consciente. As
características do discurso de si para
si [leia-se: egocêntrico] e a
diferenciação relativamente ao discurso
exterior aumentam com a idade. O que
diminui, nele, é a vocalização. Mas isto
não significa que ele vai desaparecer,
como quer Piaget.
O rápido declínio da vocalização e o desenvolvimento de outras
características (quais sejam, qualidades
funcionais e estruturais) só são
contraditórios aparentemente. De fato,
Vygotsky demonstrou que aos três anos a
diferença entre o discurso social e o
discurso egocêntrico da criança é nula.
Aos sete, por outro lado, ocorre um
discurso que pela sua estrutura e pela
sua função é totalmente diferente do
discurso social. A perda mais
significativa se dá com a vocalização. O
discurso de si para si não pode achar
expressão no discurso externo (p. 177).
Assim, tem-se a impressão de que ele vai
morrendo. Na realidade, diz Vygotsky,
oculta-se um processo complexo que
corresponde ao nascimento de uma nova
forma de discurso. Uma nova capacidade
vai-se formando: a de “pensar as
palavras” em vez de as pronunciar.
Assim, “pensar as palavras” constitui um
contínuo exercício metacognitivo...
Vygotsky concluiu, após experiências de vários tipos, que o
discurso interior deve ser encarado, não
simplesmente como um discurso sem som,
mas como uma função discursiva
diferente. Comparado ao discurso
exterior, ele parece “desconexo e
incompleto”, com uma sintaxe muito
particular. Seu método de análise
genética mostrou que, à medida que o
discurso interior se desenvolve, ocorre
a tendência para uma forma específica de
abreviação: omissão do sujeito de uma
frase e de todas as palavras com ele
relacionadas, preservando-se o
predicado. Esta tendência para a
predicação surge em todas as nossas
experiências com tal regularidade que
somos forçados a admitir que se trata da
forma sintática fundamental do discurso
interior. Lembremos aqui a teoria
sintática de Lucien Tesnière e a
gramática de casos de Fillmore, em que o
centro do enunciado é o predicado.
Curiosamente, a primeira teoria é
tipicamente sintática, e a segunda
tipicamente semântica!
Em certas circunstâncias, o discurso exterior apresenta tal
estrutura; a comparação é interessante.
Vygotsky diz que a predicação pura
ocorre em duas situações: quando se
trata de uma resposta ou quando o
sujeito já é conhecido de antemão por
todos os participantes. Por exemplo:
Quer uma chávena de chá? Resposta: Não.
Ou ainda: Não, não quero. Supondo, por
outro lado, que um grupo esteja à espera
de um ônibus, no momento em que ele se
aproxima dir-se-á simplesmente: Vem aí,
ou ainda Está chegando, ou O ônibus. É
claro que pode haver equívocos, se algum
dos interlocutores relacionar a
expressão com algo que lhe ocupa o
espírito independentemente da situação
específica – daí os mal-entendidos. Ao
contrário, quando os interlocutores
estão mentalmente orientados para as
mesmas coisas, pode-se optar por uma
sintaxe simplificada e por um número de
palavras extremamente reduzido. Isso,
entretanto, pressupõe uma situação
discursiva in presentia.
O tipo de ocorrência assinalada aqui — discurso abreviado — tem
em uma de suas formas uma interpretação
na teoria sintática de Lucien Tesniere
(1976). Ele estuda as palavras-frases
(ou phrasillons) — grosso modo as
interjeições — como estruturalmente “inanalisáveis”,
porém ricas de conteúdo semântico, o
que, segundo ele, redime sua pobreza
estrutural. Apesar de que Tesniere tenha
focalizado a teoria da sintaxe, fez uma
distinção entre plano sintático e plano
semântico, estabelecendo que a atividade
estrutural mostra-se subjetiva e
inconsciente, enquanto a atividade
semântica se apresenta objetiva e
consciente, e por isso mesmo
superficial, na sua visão. Apesar disso,
ele sustenta que entre os dois planos há
um paralelismo irrecusável: as conexões
sintáticas têm correspondentes conexões
semânticas (mas não necessariamente
coincidentes, é claro). Como o conteúdo
semântico de palavras-frases é
extremamente complexo, sua expressão
estrutural exigiria perífrases às vezes
longas. Mas o interessante na tipologia
de Tesniere é que aí estão incluídos o
sim e o não, dados como palavras-frases
lógicas ou intelectivas, de caráter
anafórico. Por quê? Porque elas mantêm
uma conexão semântica anafórica com
outras frases, condensando-lhes o
conteúdo semântico. Explicando: a
anáfora pede duas conexões semânticas;
uma é correlata à sintática, superpõe-se
a ela, e a segunda, suplementar, é a
anáfora propriamente dita. O exemplo
clássico do autor é Alfredo ama seu pai.
O termo seu conecta-se semanticamente e
sintaticamente a pai, mas apenas
semanticamente a Alfredo (seu ? Alfredo;
seu = de Alfredo), marcando relação de
identidade.
O que parece bem claro nas situações apontadas, mas não na
orientação de base sintática, é que o
caráter interacional da linguagem
permite essa economia, ou melhor,
estabelece uma economia lingüística
específica.
Ora, o discurso interior tem como regra exatamente a abreviação e
a predicação. Vygotsky lembra-se de
comparar as abreviaturas nos discursos
orais, interiores e escritos. A
comunicação escrita repousa sobre o
significado formal das palavras, e exige
uma quantidade de palavras muito maior
que na comunicação oral para dizer “a
mesma coisa”; deve ser um discurso
basicamente bem desenvolvido: a
diferenciação sintática atinge o grau
máximo e utiliza muitos termos que não
soariam naturais na conversação oral.
Vygotsky retoma uma distinção que é aqui relevante: aquela entre
monólogo e diálogo. Para ele, o discurso
interior e o discurso escrito
representam o monólogo; o discurso oral,
na maioria dos casos, representa o
diálogo. O diálogo dá abertura para o
discurso abreviado e, no limite, para
enunciados puramente predicativos, uma
vez que joga (na maior parte dos casos)
com a visão das expressões faciais e dos
gestos, bem como acompanha o tom de voz,
que é relevante para compreender as
diferenciações sutis dos significados
(ou melhor, sentidos) das palavras.
O monólogo, contudo, na perspectiva desenvolvida por Vygotsky,
não é algo artificial: na realidade, o
monólogo é a forma mais elevada, mais
complexa, a forma que historicamente se
desenvolve mais tarde (p. 188). A
velocidade do discurso oral também não
propicia a complexidade de formulação,
não deixa tempo para muitas opções; o
monólogo, ao contrário, dá ao seu autor
tempo para uma cuidada e consciente
elaboração lingüística. As exigências do
discurso escrito levam à utilização de
rascunhos. A evolução dos rascunhos para
a versão final reproduz o nosso processo
mental (p. 189). O planejamento tem aí
um papel importante, e pode ser mental,
o que faz dele um discurso interior. Mas
este também funciona como rascunho para
o discurso oral. Entendo essa comparação
apenas como uma analogia instrutiva.
A tendência para a elipse e para a predicação é tida como típica
do discurso interior; psicologicamente,
ele se constitui apenas por predicados.
A omissão dos sujeitos é uma lei do
discurso interior,... (p. 189). Ele
explica: ...é que os fatores que
facilitam a pura predicação encontram-se
invariável e obrigatoriamente presentes
no discurso interior. Sabemos aquilo em
que estamos a pensar - isto é, sabemos
já sempre quais são o sujeito e a
situação (p. 189-190). A predominância
da predicação resulta do desenvolvimento
do discurso egocêntrico. O discurso
interior é um discurso quase sem
palavras (p. 190). Já que é para si,
basta o mínimo.
Em contrapartida, o significado passa a ocupar um lugar
proeminente. O discurso interior opera
com a semântica e não com a fonética (p.
190). Vygotsky estabeleceu três
peculiaridades semânticas do discurso
interior: 1. a preponderância do sentido
das palavras sobre o seu significado.
Observemos que neste ponto ele começa a
fazer esta distinção frutífera — usual
hoje nas pesquisas em semântica da
enunciação — e que ele deve, segundo
diz, a Paulhan. O sentido de uma
palavra, nessa perspectiva, corresponde
à soma de todos os acontecimentos
psicológicos que essa palavra desperta
na nossa consciência. É um todo
complexo, fluido, dinâmico que tem
várias zonas de estabilidade desigual. O
significado aparece aí como uma das
zonas de sentido, a mais estável e
precisa. Significados, pois, pela sua
limitação, seriam “materiais semânticos”
ou “instruções” para a produção de
sentidos.
Distinção correspondente (não necessariamente igual) faz Bakhtin
em Marxismo e filosofia da linguagem,
usando os termos tema e significação.
Questionando o processo de significar,
Bakhtin (1979) estabeleceu o duplo
tema/significação na análise do “corpo
vivo” da enunciação (interação verbal
objetivada no social). Ele vê o processo
como dialético, da mesma forma que
Vygotsky (daí a convergência de suas
posições). O assim chamado signo
abstrato (tomando como referência
Saussure) não seria uma “denotação”
oposta a uma “conotação”: em termos de
significação, nada que se pudesse chamar
'objetivo' o seria sem a necessária
apreciação que só emerge no ato de
enunciar (o dito inclui o dizer). A
estabilidade da significância aparece
sempre como algo provisório, inacabado,
pretendido. Do lado da significação,
segundo Bakhtin, fica o mundo simbólico
construído e atestado, disponível. Cada
uso, por sua vez, é uma re-criação, uma
re-significação, um re-investimento. É
pelo uso que se estabelece o tema.
Volto, agora, às considerações de Vygotsky seguindo Paulhan. O
sentido surge no contexto: se o contexto
muda, o sentido muda também. Já o
significado se manteria estável através
de todas as mudanças de sentido. O
significado de uma palavra tal como
surge no dicionário não passa de uma
pedra do edifício do sentido – uma
potencialidade que tem diversas
realizações no discurso. As palavras
extraem seu sentido da frase em que
estão inseridas; esta colhe o seu
sentido do parágrafo, que por sua vez o
colhe do livro e este das obras todas do
autor (e, é claro, o processo não pára
por aí). Estabelece ainda Paulhan que
entre a palavra e o sentido a distância
(= a independência) é muito maior que
entre a palavra e o significado. Uma das
implicações disso é que uma palavra pode
muitas vezes ser substituída por outra
sem se dar modificação substancial no
sentido. Logo acima, por exemplo,
coloquei em pé de igualdade distância e
independência.
Ora, a regra no discurso interior, diz Vygotsky, é a
predominância do sentido sobre o
significado, da frase sobre a palavra e
do contexto sobre a frase. Não
seria propriamente, como afirmara em
outra parte, do semântico sobre o
fonético; aqui há já um refinamento.
Como se vê, é a noção de sistema que
reaparece, num sentido ampliado: cada
elemento compõe uma parte do todo, do
qual, nível a nível, vai tirando
sentido; antes disso, só há significado,
que é uma redução, um fragmento, uma
seleção.
Outras peculiaridades do discurso interior: relativamente à
combinação de palavras, um dos tipos
será configurado como aglutinação —
combinação que algumas línguas
apresentam regularmente, outras não. O
alemão, por exemplo, pode substantivar
uma série de palavras e mesmo frases,
que se tornam elementos em torno de um
núcleo. Vygotsky acredita que o discurso
egocêntrico da criança funciona assim. Á
medida que vai desaparecendo e se
transformando no discurso interior,
vai-se configurando uma aglutinação cada
vez maior em palavras compostas que
exprimem idéias complexas.
Uma peculiaridade de caráter semântico se traduz na forma como os
sentidos das palavras se combinam. Os
sentidos de diferentes palavras se
congregam e confluem numa outra —
“influenciam-se” de tal forma que as
primeiras estão contidas nas últimas.
Por exemplo, o título de uma obra
literária exprime o seu conteúdo e
completa o seu sentido de uma forma tal
que produz muito mais sentido que o
título de um quadro ou de uma peça de
música. Esse fenômeno atinge a máxima
incidência no discurso interior. Cada
palavra isolada [condensação do
contexto] encontra-se tão saturada de
sentido, que, para a explicar no
discurso exterior seriam necessárias
muitas palavras (p. 193).
O discurso interior se apresenta, pois, opaco (o exterior também,
em outro sentido, mas incluindo este
também). Mesmo no discurso exterior,
quando as pessoas se encontram em estado
psicológico muito próximo
(envolvimento), a linguagem se apresenta
de tal forma que os sentidos dela só são
acessíveis a iniciados. Assim, o
discurso interior tem uma linguagem de
difícil tradução, seja para o oral, seja
para o escrito. Daí a dificuldade de
passar desse “texto” (se texto é) para o
outro, visualizado ou audível: a
transição do discurso interior para o
exterior não é uma simples tradução duma
linguagem para outra, embora o discurso
interior constitua, para Vygotsky, uma
função autônoma da linguagem, um plano
distinto do pensamento verbal. A
transição não pode ser conseguida pela
simples oralização do discurso
silencioso. Este processo envolve a
transformação da estrutura predicativa,
específica do discurso interior, em
discurso sintaticamente articulado,
inteligível para os outros. É o que
Luria chama desdobramento.
O discurso interior se apresenta, pois, como algo dinâmico,
instável e derivante, que flutua entre a
palavra e o pensamento, os dois
componentes mais ou menos estáveis, mais
ou menos solidamente delineados do
pensamento verbal. Sua natureza só
sobressai quando comparado ao plano do
pensamento verbal, que é ainda mais
profundo do que o discurso interior.
Esse plano é visto como o próprio pensamento. Os pensamentos, em
sua natureza, criam conexões, preenchem
funções, resolvem problemas. A corrente
do pensamento não cria automaticamente
um discurso — e, portanto, não pode
criar o texto correspondente. Os dois
processos não são idênticos, e não há
correspondência biunívoca entre suas
unidades. O pensamento tem sua
própria estrutura e a transição entre
ele e a linguagem não se dá facilmente.
Assim como uma frase pode exprimir
muitos pensamentos, um mesmo pensamento
pode ser expresso por meio de diferentes
frases. Vygotsky remete à idéia de
subtexto, que subsume aqui tudo o que se
tem estudado em semântica relativamente
a implícitos: pressupostos,
subentendidos...
O pensamento, diz ele, não se constitui de unidades separadas,
como o exige o discurso. Ele globaliza.
Podemos comparar um pensamento com uma
nuvem que faz cair uma chuva de palavras
(p.196). Em outro texto, O problema da
consciência, ele assim se expressa: O
pensamento é uma nuvem, da qual a fala
se desprende em gotas (p. 182). A
transição entre o pensamento e as
palavras passa pelo significado. O
“pensamento oculto” — subtexto — é
inevitável. Assim, na interlocução há
sempre um mundo histórico entre duas
pessoas, e esses mundos se debatem. O
pensamento tem de passar pelos
significados e só depois pelas palavras
— melhor, talvez, significantes (v.
gráfico das elipses mais atrás).
Em resumo, o pensamento é gerado pela motivação (nossos desejos e
necessidades, interesses e emoções);
para além dos pensamentos há sempre uma
tendência volitivo-afetiva, que detém a
resposta ao derradeiro porquê da análise
do pensamento. A compreensão do discurso
de outrem tem de passar pela compreensão
de seu pensamento, mas é preciso ir
além, até suas motivações.
O percurso do pensamento verbal é assim sintetizado por Vygotsky:
vai do motivo que gera um pensamento à
modelação do pensamento, primeiro no
discurso interior, depois nos
significados das palavras e finalmente
nas palavras. MAS este não é o único
caminho, segundo ele. O desenvolvimento
pode deter-se num ponto qualquer dessa
trajetória; movimentos progressivos e
recessivos podem ocorrer, muitas
evoluções que não conhecemos ainda.
As palavras funcionam como um reflexo generalizado do mundo. Este
aspecto conduz ao limiar de outro tema
mais vasto — o problema geral da
consciência. As palavras desempenham um
papel fundamental não só no
desenvolvimento do pensamento mas também
no desenvolvimento histórico da
consciência como um todo. Cada palavra
representa um microcosmos da consciência
humana (cf. 1979, p. 200).
Em Teoria e método em psicologia (capítulo O problema da
consciência), Vygotsky já insiste sobre
o significado. O que significa descobrir
o significado?
O pensamento não é algo acabado, pronto para ser expresso. Ele
precipita-se, realiza certa função,
certo trabalho. Esse trabalho do
pensamento é a transição das sensações
da tarefa — através da construção do
significado — ao desenvolvimento do
próprio pensamento. O pensamento, como
processo interno mediado, aparece como o
caminho de um desejo vago até a
expressão mediada através do
significado, ou melhor dizendo, não até
a expressão, mas até o aperfeiçoamento
do pensamento na palavra. A formação da
palavra surge como a principal função do
signo, aparecendo o significado como
condição. Mas na consciência há também
algo que não tem significado.
Nessa obra de Vygotsky há alguns aspectos sobre a fala interna
que podem ser acrescentados àqueles já
discutidos. Contudo, saliente-se que nem
sempre fica tão clara a caracterização.
A abstração é o traço geral.
A fala interna é abstrata em dois aspectos: a) em relação a toda
fala sonora; reproduz apenas seus traços
fonéticos semantizados (por exemplo,
três erres na palavra rrrevolução...
(neste ponto, por exemplo, não fica
claro o que ele caracteriza como
semantização fonética; o que se vê aqui,
em análise enunciativa, é um fato
epilingüístico); b) apresenta-se
agramática; nela qualquer palavra é
predicativa; a fusão se efetua de acordo
com um tipo de aglutinação. Influência
do sentido: a palavra se restringe e se
enriquece no contexto. A palavra inclui
o sentido dos contextos = aglutinação. A
palavra seguinte inclui a anterior. Fala
escrita (já fiz uma anotação a
respeito): carece de entonação, de
interlocutor; simbolização de símbolos;
surge depois da fala interna, com
aspecto mais gramatizado (uma vez que
exige linearização, ou sintatização).
Mas está mais próxima da fala interna do
que a fala externa; associa-se aos
significados, esquivando-se da fala
externa.
Entendo essa fala escrita como fenômeno de transição se
considerarmos a evolução do processo
escritural e a conseqüente gramatização.
Nessa medida, é claro que ela se
apresenta como uma etapa mais próxima da
fala interna.
Conclusões parciais de Vygotsky: o significado não é dado de uma
vez por todas; configura sempre uma
generalização (por trás da palavra
existe sempre um processo de
generalização — quer dizer, uma
reelaboração contínua); o processo de
realização do pensamento no significado
é um fenômeno que flui do interior, dos
motivos para a fala.
O significado cresce na consciência; que importância tem isto
para a consciência? Ela modifica todas
as relações e todos os processos. Por
que e como varia o significado? O
significado evolui em função da própria
mudança da consciência. Qualquer
percepção nossa tem um significado.
Conhecer o significado é conhecer o
universal como singular. A generalização
é a desconexão das estruturas tangíveis
e a conexão nas do pensamento, nas do
sentido.
O consciente não se mostra simplesmente estrutural (estilo
gestalt); a consciência em seu conjunto
tem estrutura semântica, seu sentido se
dá como atitude para com o mundo
externo. A fala produz mudanças na
consciência, e assim aparece como sinal
do contato direto entre consciências. As
relações interfuncionais determinam o
significado = a consciência, a atividade
da consciência. A estrutura do
significado sofre o condicionamento da
estrutura da consciência como sistema. A
consciência está estruturada como
sistema.
Finalizando por agora essas considerações, aproveito uma
palavra-chave de Vygotsky (que aparece
no enunciado qualquer percepção nossa
tem um significado, logo acima) para
desenvolver o tópico seguinte, que me
parece crucial para esta discussão:
percepção.
Selecionei alguns aspectos da teoria de Peirce, analisada e
interpretada por Santaella (1993).
7 Um estudo da percepção
Santaella tenta nos trazer uma definição de signo, tal como
aparece em Peirce, sintetizando uma
infinidade de proposições a respeito da
percepção dentro da obra analisada.:
o signo é algo (qualquer coisa) que é determinado por alguma
outra coisa que ele representa,
essa representação produzindo um
efeito, que pode ser de qualquer
tipo (sentimento, ação ou
representação) numa mente atual
ou potencial, sendo esse efeito
chamado de interpretante (p.
39).
A partir da teoria da percepção de Peirce — tal como esboçada e
interpretada por Santaella — tentarei
ver se é possível uma analogia com a
linguagem interior na concepção dos
outros autores, relacionada
especialmente ao nível de primeiridade
da percepção. Tal é a hipótese que
avento neste momento, de um modo ainda
intuitivo. Mas preciso apresentar,
preliminarmente, a concepção de
primeiridade, secundidade e terceiridade
na teoria peirceana, já que esta tríade
constitui a estrutura do edifício
teórico do autor. Valho-me, para isso,
do glossário elaborado por Pinto (1995).
Primeiridade corresponde à primeira das três categorias da
experiência; diz respeito às
propriedades de um fenômeno que podem
ser descritas por predicados monádicos
(X é verde) observados numa entidade
considerada em si mesma. Nessa categoria
entrariam aspectos fenomenais puramente
qualitativos; seria a primeira
concepção, segundo Peirce.; ou ainda,
uma abstração pura, que é pré-reflexiva,
mais ou menos como um sentimento,
sensação, ainda não consciente, não
elaborado (indizível, intangível).
Secundidade diz respeito à segunda
dessas categorias da experiência; é a
categoria da ocorrência, da existência,
em contraposição à primeiridade, que
corresponde à categoria do Ser. Qualquer
coisa é um segundo na medida em que
existe, do que decorre a relação com um
outro: algo surge como segundo como
participante de uma relação diádica. Só
acontece a consciência da qualidade de
algo em contraste com outra qualidade. A
primeiridade é atemporal; só começa a
haver a noção de tempo a partir da
secundidade. Esta tem um caráter
acidental e singular. O registro do
sentimento aparece como fato na
secundidade. Terceiridade, por sua vez,
completa a tríade; corresponde à
capacidade que algo tem de representar,
na medida em que esse algo existe (secundidade)
e é (primeiridade). Essa capacidade
aponta para o futuro e para um caráter
geral. Em sua generalidade, um terceiro
tem a ver com o mundo potencial da
qualidade e com o mundo factual dos
existentes: funciona como a conexão
entre a qualidade (primeiro) e o fato
(segundo). A linguagem verbal, por seu
caráter verbal de lei, simbólico e
regulador, só pode constituir um
terceiro (signo); ela tem o poder de
conectar aquilo que é e aquilo que está
aí, permitindo o acesso do sujeito ao
conhecimento.
Antes ainda da síntese que Santaella faz, apresento um comentário
sobre a abdução, tipo de raciocínio
proposto por Peirce e que aparece ao
lado dos tradicionais indução e
dedução.
A abdução é referida como o tipo específico do julgamento das
percepções. Peirce comparou o julgamento
de percepção com as inferências
abdutivas. A abdução está em nível de
primeiridade, a indução em nível de
secundidade e a dedução em nível de
terceiridade. Sintetizando, diz
Santaella:
Trata-se de um quase raciocínio, instintivo, uma espécie de
quase-adivinhação, altamente
falível, mas o único tipo de
operação mental responsável por
todos os nossos insights e
descobertas. Sem ele, o homem
perderia a capacidade de
descobrir, do mesmo modo que,
sem asas, os pássaros seriam
incapazes de voar. (p. 66)
O que diferencia julgamento de percepção e raciocínio abdutivo?
Ambos são igualmente falíveis, porque hipotéticos. No entanto, o
julgamento de percepção tem algo
de insistente, compulsivo, algo
que obstrui nosso caminho e que
somos obrigados a reconhecer,
enquanto que a inferência
abdutiva é mais gentil. Ela
nasce em momentos de soltura, de
entretenimento quase lúdico do
pensamento consigo mesmo, por
isso mesmo, é destituída de
certeza. O julgamento de
percepção, ao contrário, embora
falível, é indubitável. (ibid.,
p. 67)
Vejamos exemplos desses raciocínios (Pinto, 1995, p. 13-15):
Dedução: Todos os feijões daquela saca são brancos/Esses feijões
são daquela saca/Logo, esses feijões são
brancos.
Indução: Esses feijões são daquela saca/Esses feijões são
brancos/Logo, todos os feijões daquela
saca são brancos.
Abdução: Todos os feijões daquela saca são brancos/Esses feijões
são brancos/Logo, esses feijões são
daquela saca.
Diz o autor:
... a abdução compartilha com a dedução o fato de ter a regra
geral como premissa inicial
(todos os feijões, etc.).
Entretanto, como a indução ela
arrisca um palpite que pode dar
errado. Olhada dessa maneira, a
abdução está, portanto, entre a
indução e a dedução. Contudo,
ela difere das duas também pela
maior possibilidade de erro
implícita na hipótese que ela
lança, porque é fácil perceber
como tanto a indução quanto a
dedução estão baseadas na
experiência.
[...] Fundamentalmente, o que acontece [na abdução] é que uma
hipótese é formulada com base na
experiência, através da escolha
de um interpretante [...]
logicamente possível para os
signos [...] que se oferecem à
observação.
Na medida em que a inferência abdutiva é uma hipótese (um
palpite), ela deve ser posteriormente
testada por dedução. O interessante aqui
é que a abdução, como previsão, se
insere na terceiridade, mas funcionando
como insight, como um flash, é um
terceiro com teor de primeiro. Ou seja:
no esquema triádico, a abdução é
primeiridade em relação às outras
inferências, mas as três, por envolverem
atividade sígnica, são da ordem do
terceiro.
Uma noção chave de Peirce para auxiliar na compreensão do
processo de percepção é a de medad.
Refere-se à importância da participação
da primeiridade na percepção. A medad
pode ser concebida como primeiridade
perto de um estado puro. Nos termos de
Peirce: fenômeno que deve ser entendido
sem se reportar à relevância da
aplicação do predicado a um sujeito que
se refere ao fenômeno (apud Santaella,
p. 72).
O que acho notável aqui é a referência à primeiridade, compatível
com a noção de linguagem interior no
sentido de “centelha” que permite uma
exteriorização, e esta novidade: a
irrelevância da aplicação do predicado a
um sujeito. Ora, Vygotsky dizia da
linguagem interior que ela é
predicativa. Peirce apenas neutraliza
essa relação predicado-sujeito. Mas as
idéias, se não desejarmos passar além da
analogia, encaixam. A medad aparece como
“um flash de incandescência mental”.
A percepção funciona como porta de entrada do conhecimento. Seu
objeto é algo que está no mundo e age
quase que fisicamente sobre nós;
contudo, nunca estamos em situação de
corpo e mente imediatamente colados a um
objeto que possa ser tomado como objeto
originário da semiose. Há sempre
mediação, inalienável. E o objeto do
signo também tem sempre natureza sígnica.
Quanto mais tentamos nos aproximar do
objeto dinâmico mais mediações vão
surgindo, o que significa que esta
“realidade última” sempre fica a uma
certa distância, só pode ser
representada, não tocada. O objeto
imediato que qualquer signo tenta
representar tem ele próprio o papel de
signo. Mas Peirce colocou ênfase também
na secundidade — que significa interação
existencial, espacial, contato físico.
Santaella considera a percepção o processo mais privilegiado para
colocar na frente do pensamento a massa
dos três elementos de que somos feitos:
o físico, o sensório e o cognitivo. O
papel cognitivo na percepção é
desempenhado pelo julgamento perceptivo
(lembrar abdução). Características: 1)
Ele não está separado dos outros fluxos
mentais. 2) É a primeira premissa de
nossos raciocínios. 3) Contém
características gerais em nível de
terceiridade. 4) Mistura-se e desaparece
na abdução. 5) Contém elementos
hipotéticos (falíveis, portanto).
Logicamente o julgamento de percepção funciona como um primeiro,
e produz um efeito em nós. Sem ele
seríamos incapazes de orientação, reação
e compreensão. Mas o julgamento de
percepção se produz a partir de um
objeto dinâmico, que tem primazia real
sobre o signo. Esse é o percepto, aquilo
que aparece e se força sobre nós, no
sentido de que não é guiado pela razão:
não-psíquico, não-cognitivo; um
acontecimento singular, irrepetível.
Estamos em nível de secundidade.
Etimologicamente, ‘percepto’ significa
apoderar-se, recolher, apanhar: alguma
coisa é tomada de fora.
O percipuum poderia ser entendido, como o quer Berstein, como o
percepto concebido como produto mental:
a pura qualidade imediata do percepto
produziria como efeito um sentimento de
qualidade, simples, positivo, sem
misturas (feeling) — primeiridade.
Contudo, na percepção há uma dominância
da secundidade, na medida de seu contato
conosco, que pode ir desde uma sensação
sutil de conforto até a fuga em pânico.
Mas na percepção há sempre um jogo de
primeiro, segundo, terceiro: 1) o
sentimento de uma qualidade imediata; 2)
a compulsão que nos faz atentar para
algo que se força sobre nós
(existência); 3) o fator de juízo,
julgamento de percepção no qual todos os
elementos se juntam. Só somos capazes de
traduzir o percepto em julgamento de
percepção porque estamos equipados com
esquemas (linguagem interior?)
provavelmente inatos (hipótese de
Santaella) que processam e traduzem
aquilo que está fora em algo que tenha
semelhança com os demais tipos de
julgamentos que fazemos.
No quadro geral da semiótica peirceana, Santaella conclui que o
percepto corresponde ao objeto dinâmico
da semiose perceptiva, e o percipuum ao
objeto imediato, ponte entre o percepto
e a interpretação. Na medida em que este
é tradução do percepto de acordo com o
modo como estamos aptos a traduzir o que
vem do mundo exterior, o percipuum não é
neutro: está colocado abaixo do nível de
nossa deliberação e autocontrole. Tão
logo aflui, é colhido e absorvido nas
malhas dos esquemas interpretativos com
que somos dotados — os julgamentos de
percepção. Santaella insiste em que
pouco ou quase nada há de nosso controle
no processo perceptivo (p. 99).
Para Peirce, a percepção é necessária na fundação do pensamento.
O conhecimento começa na porta da
percepção, o que significa fundar o
pensamento em terreno movediço: 1º quase
todo o processo ocorre sem nosso
controle voluntário; 2º o conhecimento
só tem valor na medida de sua
contribuição para futuras
interpretações. O significado de
qualquer pensamento, portanto, e de sua
função cognitiva, conseqüentemente,
depende de o pensamento ser referido a
pensamentos futuros em virtude da
interpretação (p. 114).
8 Percepção, cognitivismo e consciência
Se a fundação de nosso pensamento começa com a percepção mas
parte do processo não se torna
consciente, como diz Peirce, isso
constitui um óbice para a linguagem
interior e sua função?
Sem desejar atropelar os trabalhos que caminham na direção do
estudo da consciência, chama-me a
atenção a observação de Teixeira (1995):
Até recentemente este tema recebeu pouca
atenção por parte dos pesquisadores na
área de ciência cognitiva (p. 183). Com
o reconhecimento do fracasso de
tentativas de simulação da atividade
mental humana, o receio de que os
pesquisadores fossem arrastados para as
alturas metafísicas se relativizou.
Meu interesse na leitura deste autor se prende ao seu objetivo de
mostrar a possibilidade de formular uma
teoria da consciência sem romper com o
materialismo. Ele se recusa a aceitar
teorias que pressuponham um abismo entre
o físico e o mental, e aponta duas bases
para o desenvolvimento de seu trabalho:
a teoria da evolução (método genético) e
as investigações sobre o funcionamento
cerebral encaminhadas do ponto de vista
conexionista — que devem conduzir a uma
teoria evolucionária da consciência.
Refletindo inicialmente sobre as enormes dificuldades conceituais
encontradas em estudos de modelos
cognitivistas da consciência, Teixeira
passa a algumas considerações
preliminares à formulação de sua
proposta, estabelecendo o seguinte:
a) a consciência resulta de um processo intracerebral
essencialmente dinâmico;
b) não há consciência sem conteúdos mentais, embora nem todos os
conteúdos mentais exerçam
controle sobre nossas atividades
mentais ou comportamentos;
c) uma teoria da consciência deve partir de uma distinção entre o
comportamento no qual “sabemos o
que estamos fazendo”
(autoconsciência) e o
comportamento mecânico puro e
simples; e
d) a representação (ou o significado, no caso do comportamento
lingüístico) deve preceder, na
qualidade de um ato mental, a
ação que se desenrola a seguir:
ela deve fornecer ao organismo
um conjunto de cenários
possíveis para que uma escolha
seja efetuada. Uma teoria da
consciência deve poder explicar
como surgem os múltiplos
cenários.
Deve-se supor que os maiores problemas, quando se trata de
simular a organização mental, estão
ligados à autoconsciência (self-consciousness):
o “saber o que está fazendo” — um
aspecto da questão, por exemplo, é o
poder analisar e falar de seus próprios
sentimentos.
Isto tudo leva a considerar que Descartes estava certo traçando
nítida demarcação entre seres humanos e
autômatas. O erro dele, segundo as
longas considerações de Damásio (1996),
foi o dualismo, que postula a
superveniência do mental sobre o fisico,
o orgânico, e do racional sobre o
afetivo. Teixeira também aposta nisto,
mas em outra direção: os seres humanos
não seriam os únicos a poder gerar
“cenários internos” (cf. p. 191). O
autor admite algum grau de consciência
em animais. Popper e Eccles (1992)
também afirmam isto. O grande nó está na
possibilidade da representação, ou seja,
a realização de atos mentais com base em
representações internas (o que estaria
vinculado, inescapavelmente, à linguagem
interior, tal como conceituada mais
atrás).
Ora, o comportamento humano é precedido por esses atos mentais,
que podem retardar ou inibir a ação
dependendo das escolhas. Tais escolhas,
é claro, têm a ver com projetos humanos,
no sentido em que foram analisados por
Damásio e Goleman, por exemplo. Isso
significa postular a autonomia do ser
humano.
Assim, Teixeira assume que uma teoria da consciência deve
explicar a possibilidade de representar
conjuntos comportamentais de modo a
mostrar o resultado como a escolha do
sujeito, ou seja, consubstanciar o
projeto de vida correspondente. Essa
teoria pressupõe uma explicação
histórica e genealógica.
A hipótese inicial de Teixeira é a existência de um processo
intracerebral relacionado a categorias
biológicas (evolucionismo). Mas, diz
ele, há duas dificuldades
epistemológicas: 1) a história da
evolução será sempre uma “crônica” de um
passado inacessível, não passível de
validação; 2) não se pode atribuir à
consciência, no processo adaptativo, uma
função direta.
Suas hipóteses fundamentais:
a) a evolução é essencialmente uma evolução das formas de
comportamento. Assim, embora
comportamento consciente e
comportamento automático sejam
distintos, sua raiz é comum: o
primeiro emerge do segundo (e,
filogeneticamente, o segundo
pode resultar do primeiro,
acredito: o aprendizado
consciente de um processo leva,
pelo menos parcialmente, à
automatização). A pergunta é:
como aparecem os conteúdos
mentais que surgem como
representações, cenários
possíveis? Seria necessário
explicar a emergência da
intencionalidade;
b) do comportamento automático para o comportamento consciente
houve desvinculação progressiva
entre a formação de conteúdos
mentais e a produção de
comportamentos (intervalo entre
input e output);
c) a consciência se instaura gradualmente e pressupõe hierarquia
cognitiva; e
d) a escolha entre cenários não pressupõe um intérprete ou
“homúnculo” no cérebro. Esse
intérprete é uma ilusão da
primeira pessoa.
Como se dá a passagem do comportamento automático para o
comportamento consciente?
O comportamento automático manifesta a organização adaptativa das
relações organismo/meio ambiente. Sua
função é a satisfação das necessidades
biológicas básicas, a garantia da
sobrevivência. Automatismo, contudo,
pressupõe repetição e impossibilidade de
modificações do comportamento, de
aprendizagem e sobreviência em situações
extremas.
Numa segunda etapa evolucionária teríamos o comportamento
semi-automático. Seu aparecimento pode
estar ligado ao surgimento de
alternativas para a satisfação de
necessidades biológicas. Daí as
pré-representações (significados),
primeira forma de conteúdo mental, que
contêm um indício de seu referente no
mundo, e atuam como disposições,
formando padrões de comportamento. Elas
estariam no limiar dos conteúdos mentais
plenos. A dinâmica das representações
precisaria sobrepor-se à morfologia fixa
do organismo para produzir comportamento
diversificado, facilitando a adaptação
em ambientes outros (passagem da rigidez
à plasticidade dos comportamentos).
Outro fator seria a ampliação da quantidade de informação a ser
processada pelo aparato cognitivo, que
seria concomitante ao aumento da
complexidade da rede de conexões
orgânicas. O terceiro fator, do qual os
outros dependeriam, seria uma diminuição
do grau de especialização dos mecanismos
de discriminação de inputs, já que o
alto grau de especialização implica
rigidez dos padrões.
A expansão da plasticidade do comportamento pressupunha
dissociação progressiva das primitivas
conexões, com a formação de mecanismos
biológicos específicos — daí o aumento
do intervalo entre input e output —
dando lugar a múltiplas representações.
A formação de representações plenas que passarão a interferir e
modificar o curso dos
comportamentos é um destes
mecanismos biológicos. Seu papel
funcional é indireto, ou seja, é
possível que um organismo
sobreviva sem ter representações
plenas, conceituáveis e
passíveis de serem expressas
lingüisticamente, mas estas
constituirão sempre um passo a
mais em direção a uma maior
adaptabilidade a ambientes
variáveis (p. 198).
Chegamos aos conteúdos mentais independentes (conscientes),
ocupando topicamente os intervalos
input-output — primeira forma de vida
mental. Se tais conteúdos mentais
precedem certos comportamentos, eles se
tornam comportamentos conscientes; a
escolha de um “cenário possível” para
guiar uma ação corresponde a um processo
de disputa competitiva pela
predominância do cenário que determinará
o output (p. 199). O que determina a
escolha? Entre outras coisas, a memória
filogenética de ações bem-sucedidas em
ambientes similares.
É interessante observar que a tal “disputa competitiva”, que
aparece como escolha do ponto de vista
da primeira pessoa, corresponde a uma
“seleção natural” no nível intracerebral,
onde ocorreria com mais brevidade.
Então Teixeira passa ao seguinte nível: como os cenários
passariam a ser construídos a partir de
proposições? ou melhor, como dariam
lugar a atitudes proposicionais
(comportamento lingüístico)? Bem, o
organismo teria de poder atribuir
valores de verdade (verdadeiro x falso).
Desenvolver atitudes proposicionais
pressupõe a faculdade de gerar conceitos
— e esta capacidade diz respeito a
representações que possam ser expressas
pela linguagem.
A linguagem, por sua vez, surge como processo que permite o
aparecimento de múltiplos cenários
possíveis. Mas o próprio aparecimento da
linguagem é uma dificuldade: uma
informação ligada à situação imediata (a
um certo comportamento) torna-se
independente dela e pode ser
transmitida, passando a desempenhar
papel fundamental no desenvolvimento
cognitivo e na sobrevivência. Formam-se
atitudes e crenças, e ainda a capacidade
de avaliação das crenças.
A produção de sinais e o posterior desenvolvimento dos mecanismos
de linguagem são fundamentais no
processo que conduz das
pré-representações à formação de
proposições e de atitudes. Este
processo culmina na
possibilidade de gerar conteúdos
mentais acerca de objetos
não-existentes ou in-existentes,
ou seja, objetos que não têm uma
existência física ou um
correlato objetivo (p. 201).
Esse processo que gera cenários possíveis também envolve a
produção fragmentária de imagens mentais
subjacentes ao discurso — associadas por
precedência ou subseqüência ao processo
de compreensão. A admissão desse
complexo imagético é que leva a que não
consideremos uma máquina como capaz de
compreender a linguagem humana.
Teixeira finaliza com algumas reflexões sobre a simulação: 1) uma
simulação da consciência não forma de
fato uma experiência da consciência, MAS
2) a teoria proposta (a consciência
surge da projeção de cenários possíveis,
estes emergentes do aumento de intervalo
entre input e output) tem paralelo nas
teorias conexionistas contemporâneas:
Quadro 1 - Teoria da consciência versus a teoria conexionista:
Teoria da consciência |
Teoria conexionista |
1. aumento do intervalo input-output |
1. ampliação hierárquica de redes |
2. projeção de cenários possíveis |
2. disputa competitiva entre as redes |
3. processo de seleção natural na atividade intracerebral |
3. acomodação das redes (definição de output) |
E conclui: a simulação da consciência deveria abandonar as
propostas da computação simbólica em
favor da simulação do cérebro, com base
nas pesquisas sobre darwinismo neural –
sem esquecer que ainda estamos longe de
poder atribuir consciência a sistemas
desse tipo. Ele lembra, porém, que a
produção lingüística ou imagética de
cenários possíveis tem um paralelo
tecnológico na geração de realidades
virtuais. É possível, com a realidade
virtual, projetar-se para dentro de um
cenário, variá-lo e construir
alternativas de comportamento futuro.
Terminada esta resenha, percebe-se que a pergunta com que iniciei
este tópico não fica respondida, a não
ser intuitivamente: seguindo Vygotsky, a
linguagem interior funciona de qualquer
forma, e a dependência do maior ou menor
grau de consciência é uma questão de
desenvolvimento humano. Com efeito, na
perspectiva sócio-histórica esse
desenvolvimento está ligado às
possibilidades de interiorização da
“fala egocêntrica” da criança, que deve
dar-se através de um processo criterioso
de mediação, dos adultos em geral e dos
professores em particular, no âmbito da
escola, com base na idéia de
interatividade — atividade partilhada,
cooperativa.
Numa comunicação de 1930 (Sobre os sistemas psicológicos),
Vygotsky (cf. 1996) se detém no exame da
percepção, e afirma que na criança já se
verifica relativa independência, o que
significa que se pode observar aquele
intervalo input-output, em que a
motricidade pode ser inibida ou
retardada: ou seja, a criança tem
capacidade de “medir” a situação antes
de agir.
Vygotsky diz que a percepção se desenvolve segundo o mesmo padrão
que o pensamento e a atenção arbitrária;
há uma interiorização dos procedimentos:
a criança percebe algo e o compara com
outra coisa. Com o tempo, estabelece-se
uma complicada síntese com outras
funções, concretamente com a da
linguagem. De modo que a percepção, para
nós, constitui uma parte do pensamento
em imagens, porque ao mesmo tempo em que
percebo vejo que objeto percebo.
Vygotsky preocupou-se com a idéia de “percepção clara”, mostrando
as dificuldades experimentais para
obtê-la: é impossível, fora da
patologia, estabelecer a estrutura
básica da percepção. Acredito que ele
queria referir-se àquela idéia de
“centelha” que focalizei anteriormente
na teoria semiótica peirceana. Ou ainda:
penso que ele se referia à idéia de “primeiridade”,
o primeiro degrau no edifício
perceptivo.
Na observação da formação de sistemas psicológicos na criança,
Vygotsky concluiu que toda forma
superior de comportamento aparece em
cena duas vezes durante seu
desenvolvimento: primeiro na forma
coletiva (interpsicológica); depois a
forma coletiva se transpõe para a
prática do comportamento individual. Do
ponto de vista da linguagem, é assim que
se forma o discurso interior.
Em suma, ele postula a tese da origem social das funções
psíquicas superiores. Crucial nesse
desenvolvimento é que os “signos” que
desempenharam papel relevante na
história cultural do homem são, na
origem, meios de comunicação, meios de
influências sobre os demais. Sem eles, o
cérebro e suas conexões iniciais não
poderiam se transformar nas complexas
relações, o que ocorre graças à
linguagem (p. 114).
A forma de pensar e os conceitos que nosso meio cultural nos
impõem incluem, sem dúvida, os
sentimentos. A percepção dos sentimentos
é um traço de metacognição — de
autoconsciência. O sentimento se percebe
sob a forma de raiva, ciúme, desgosto,
etc., mas não se distingue, na prática,
onde termina a percepção superficial
[feeling] e onde começa a compreensão de
determinado objeto. Assim, no nível
afetivo não experimentamos ciúme, raiva
ou desgosto de maneira pura: há sempre
conexões conceituais. Pensar nos afetos,
no mundo emocional, produz algo
interessante: altera-se a vida psíquica,
e essa alteração é histórica.
9 Reflexões
Retomo um pouco, a partir daqui, a qualidade predicativa do
discurso interior. Vygotsky o vê como um
discurso quase sem palavras — aliás,
desnecessárias, na sua qualidade de
orientação para o próprio locutor:
apresenta-se desconexo e imcompleto.
Incompletude significa, em última instância: falta sempre um
contexto mais amplo para a negociação de
sentidos e a compreensão do sujeito — o
que remete ao des-conhecimento fatal de
si mesmo. Eu poderia dizer, então,
usando uma escala operatória, que o
discurso interior é incompletude
“máxima” e que o discurso exterior,
voltado para o outro, é incompletude
“mínima”; por outro lado, o discurso
interior mostra-se maximamente
contextualizado do ponto de vista
interno (ou seja, do próprio locutor), e
maximamente descontextualizado para o
outro, em sua orientação social. Quer
dizer: o primeiro está basicamente a
serviço da orientação mental do
pensamento com sentido, centrada no
sujeito em sua qualidade individual. Não
sendo diretamente socializável, não vale
para o outro, embora este seja parte de
sua identidade. Quero dizer que, se não
passar pelo filtro da exteriorização,
não tem eficácia.
Uma das peculiaridades semânticas do discurso interior,
salientada por Vygotsky, é a
predominância do sentido sobre o
significado, da frase sobre a palavra e
do contexto sobre a frase. Penso que se
deve entender isto da seguinte forma:
sendo o sentido complexo, fluido e
dinâmico, está tingido de todos os
matizes no nível de nossa consciência, o
que cria em nós, como locutores, a
sensação de clareza (pelo menos muitas
vezes); já que o contexto importa mais
que as frases e as palavras, restam
efetivamente pequenas ilhas carregadas
de sentido — mas apenas para o locutor,
e mesmo assim aparentemente, ou seja,
“estava muito claro na minha cabeça”
pode ser um argumento para justificar o
azar (nos dois sentidos) de um texto
fracassado.
O nó da questão parece encontrar-se, portanto, nos limites da
percepção e nas mediações que surgem
para tentar atingir — se isso fosse
possível — o que foi chamado por Peirce
de objeto dinâmico (conforme discussão
mais atrás), ou melhor, nas
representações de linguagem que são
produzidas, depois
memorizadas/arquivadas, depois reusadas
e reinvestidas, num jogo contínuo que,
externamente, recebe a máxima sanção
social — contrariamente às
representações internas, que estão
associadas a elementos de ordem
imagética, e nessa ordem tendem à
espontaneidade, não sofrendo censura.
Quero dizer: o sujeito, em sua inscrição
social, sabe que precisa negociar o seu
projeto interno em função das restrições
de uso.
Se a percepção é a porta de entrada do conhecimento, e necessária
na fundação do pensamento, de seus
conteúdos mentais, o nível que é
atingido pela percepção (estou me
referindo a primeiridade, secundidade,
terceiridade) é que explicaria a maior
ou menor possibilidade de cenários (nos
termos de Teixeira) para uma escolha
subjetiva. Em outras palavras, a geração
de conceitos (leia-se significados), ou
a capacidade de formar conceitos
corresponde à formulação de
representações mentais que, ainda em
nível psíquico, poderiam transitar da
linguagem interior para uma linguagem
planejada (em algum nível) que receberia
materialidade em sua exteriorização para
o outro (discurso exterior).
O significado como generalização em nível de linguagem, na
concepção de Vygotsky, corresponde,
segundo minha observação, à
representação que deve fornecer ao
organismo os cenários possíveis para uma
escolha subjetiva, conforme requisito
apresentado por Teixeira para uma teoria
da consciência.
Gostaria de incluir aqui, por pertinente, uma pequena discussão
sobre a “imagem”, e para isto uso um
estudo de Cabas (1982) sobre Lacan, no
capítulo em que discute sobre a tríade
simbólico/imaginário/real. A imagem, tal
como aparece no ato perceptivo, é um
composto de características visuais.
Como é, pergunta o autor, que um objeto
real se inscreve? como é que, estando
fora, aparece dentro? Uma imagem, é
claro, não é simples reflexo. Ela é
captada e retomada, recuperada,
assimilada, de acordo com um complexo de
imagens que precedem e permitem ao mesmo
tempo metabolizar a nova impressão. Ou
seja, a inscrição ou impressão só
acontece se houver um conjunto que torne
possível o que é percebido: dentro de um
registro simbólico. Cito um trecho do
autor para exemplificar esse
dispositivo:
... a atitude de um antropólogo ante um ícone é substancialmente
distinta da atitude do nativo da
cultura em que tal ícone está
inserto, mas, ao mesmo tempo,
substancialmente distinta da
atitude do colecionador. É que o
mesmo ícone, que para o
antropólogo é objeto de estudo,
para o nativo é objeto de culto
e ritual, enquanto que para o
colecionador é objeto de gozo
estético, seja em sua forma
visual ou possessiva. É que o
registro simbólico que cada um
destes sujeitos dispõe para
assimilar o objeto em questão
varia segundo sua inscrição e
sua prática. De fato, o objeto é
assimilado de acordo com os
próprios esquemas de pertinência
e uso. (op.cit., p. 17-18)
Assim é que imagem remete a rede de imagens: o conjunto já
constituído permite receber a nova
impressão e esta, por sua vez, também
modifica o registro. É o circuito que já
conhecemos. E é ele que determina o
imaginário. No estudo da percepção,
sabe-se que órgão tem sido colocado como
“o primeiro aparelho de coordenação do
espaço”: o olho. Dada essa prevalência,
uma boa parte de nossas percepções estão
caracterizadas pela imagem visual, e as
outras se subordinam a essa.
Assim, se nosso pensamento é já sígnico — e como tal
interpretável — conforme afirmou também
Peirce, uma semiose interna se processa,
de uma complexidade que não admite
simples tradução para o outro, quer se
trate de linguagem verbal, quer se trate
de quaisquer outras possibilidades de
expressão. Não seria de mesma natureza o
processo de tradução de uma língua para
outra, acredito, mas se trataria sempre
de uma tradução. No caso do locutor que
já tem um projeto, ele fica dependente
dos meios disponíveis para a
exteriorização — e já sabemos que um
deles é o complexo que chamamos
aprendizado —; no caso do tradutor
especialista, ele já dispõe de uma
realização exterior (uma obra). E
precisa, por sua vez, de uma
reelaboração para aproximar duas
linguagens, duas culturas. Estou
aproximando tradução, neste contexto, de
re-investimento: parece que é sempre
esse o caso.
O que fica razoavelmente claro para mim é que a linguagem
interior, tal como definida e defendida
aqui, designa um plano de ação futura;
eu gostaria de acrescentar: em duas
etapas: uma de caráter “inconsciente”,
que corresponde às redes que se vão
formando como disponibilidades de
pensamento (potencial), e outra de
caráter operatório: o pensamento em via
de expressão apreendendo a si mesmo
(como imagino que diria Gustave
Guillaume), projetando a expressão, o
desdobramento. Se compararmos nossos
projetos de dissertação ou tese (que já
são, em outro nível, realização de
projetos) com a pesquisa efetivamente
elaborada, teremos uma idéia do que
entendi pelo processo de desdobramento
da linguagem interior. Como dizia
Barthes, já citado no início deste
trabalho, a escrita é trabalho sobre uma
matéria-prima (os arquivos disponíveis
mais o processamento subjetivo).
Foucambert diz que se trata da
manipulação do significante, mas, a
considerar Vygotsky trata-se mais de
sentidos internos que terão de sofrer
reinvestimento. Aliás, relembro Vygotsky
nesta passagem: o pensamento flui como
uma corrente interna através de uma
série de planos, e é preciso investigar
esses planos que o pensamento percorre
antes de se “encarnar” nas palavras.
Assim é que, para o locutor, passa a ilusão de uma fala interior
clara, e a ilusão de que o outro poderia
penetrar aí; a escritura (e mesmo a fala
externa), ao contrário, configura um
distanciamento fundamental — que é um
abismo para si mesmo e abismo para
chegar ao outro. Cria-se um conflito. O
locutor já tem estabelecida uma forma de
encarar o real, planeja a partir de seu
repertório, deve reusar sua percepção e
todas as funções mentais superiores na
exteriorização, e então se vê obrigado a
rever suas posições, em função do
controle social: a enunciação se forja
sempre com base nos limites externos.
Ele descobre, então (passo a passo),
que, como dizia Claude Simon (citado por
Foucambert; cf. início deste artigo),
escreve-se aquilo que se produz durante
esse trabalho. Descobre também algo
muito salutar: a escritura produz
conhecimento de fato.
Diga-se de passagem que as reflexões permearam todas estas
páginas; elas não estão contidas apenas
neste último tópico, como sua inscrição
pode dar a entender. O que é certo é que
o explorador não sabe onde vai parar nem
o que vai descobrir: ele sabe que está
buscando alguma coisa, e às vezes pensa
que sabe o que é — talvez sempre uma
ilusão com uma face muito real.
Embora não tivesse, desde o início, a pretensão de dar respostas
às questões que orientaram esta
pesquisa, retorno a elas para revê-las e
— quem sabe?— propor outras mais
pertinentes.
Quando nasce o texto? O que é
manifestação textual? A
manifestação é critério
fundamental para definir o
texto? Qual o limite da
textualidade? Assim como se diz
‘linguagem interior’ pode-se
dizer ‘texto interior’?
A partir do que aprendi com o material de pesquisa e a reflexão
feita, entendo que um texto nasce — e
não fica “pronto” — quando algum
material externo está sendo manipulado
com orientação para o outro, e fica
pronto, como manifestação enunciativa,
por decisão de seu autor, na medida em
que, controlado externamente, configurou
sua matéria-prima dentro de parâmetros
genéricos.
Entretanto, se nada me impedir de restringir o conceito, posso me
referir a um projeto mental, ligado à
minha linguagem interior, como “texto”.
Só por analogia, só por figuração –
porque o critério mínimo fundamental, me
parece, deve ser o da direção para a
eficácia — que só se encontra num
projeto exteriorizado, desdobrado, que
seja de fato um gesto para o outro. A
manifestação textual é, assim, um
complexo orientado socialmente; sem essa
orientação, não passa de caricatura,
simulação (no sentido negativo dos
termos). Em toda a literatura corrente,
aliás, mesmo admitindo que algumas
teorias não tenham um quadro discursivo
estrito, os atributos de textualidade
privilegiam essa orientação.
A terceira resposta decorre do que disse acima. Texto mental, sem
aspas, só aquele que já foi memorizado a
partir de uma manifestação. Admitirei,
para eventuais gênios, que um texto
mental não tenha sido resultado de
mentalização, ou seja, que tenha sido
projetado, manifestado subvocalmente,
revisado e arquivado mentalmente sem que
a matéria-prima precisasse de outro
suporte, algo externo. Mas, para
orientá-lo socialmente de fato,
precisará de algum tipo de veículo. E
então não haveria, ainda, reinvestimento?
O limite inferior da textualidade, penso, com base nesses
pressupostos, é o rascunho — não o
projeto, mas uma face a ser “maquilada”
— que nada impede seja chamada “projeto
de texto” pelo seu autor.
Finalmente, um “texto interior” só valeria para seu próprio
sujeito — que eu não ousaria chamar de
autor: mesmo que digamos ter tido
idéias, só será possível que o outro se
refira a “idéias de fulano” na medida de
sua manifestação, por que meio seja. É
nesse sentido que, para texto, de pouca
valia são as “intenções”. Tal atitude
pode até servir de explicação para
fracassos, mas não de justificativa. E a
sociedade, nesse sentido, não é nada
condescendente.
10 Últimas palavras
Não fora este um trabalho realizado com base em algo que tomei
quase como provocação, poderia não ter
passado da fase de “projeto mental”.
Gostaria, contudo, que fosse tomado em
sua incompletude discursiva, para que,
na medida de leituras produtivas,
consigamos coletivamente compor algo
mais consistente. Por isto, sugestões e
críticas de todo tipo serão muito
bem-vindas.
(Abril de 1997)
Referências